“Vai ser uma chumbada, todos a dizerem bem. Se houvesse alguém que tivesse a coragem de dizer mal. Acho que vou fazer esse apelo”. Estas palavras, não totalmente irónicas, disse-as António Torrado, celebrado autor de literatura para os mais novos, em setembro de 2010, quando completou 40 anos de vida literária. Vê-los condensados nos jornais em linhas de prosa florida soou-lhe a “notícia necrológica”, que então procurou rasurar. Se por altura desta homenagem rejeitava o consenso, menos o desejaria agora que partiu. Sabia bem que, como dizia o cronista brasileiro Nelson Rodrigues, “toda a unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”. Sabia que o consenso, a concordância cega pode ter sinónimos nefastos.
Poeta, ficcionista, dramaturgo, editor, produtor e argumentista para televisão e cinema, António Torrado foi um extraordinário criador infatigável que soube aliar o domínio da arte narrativa e a sólida cultura do filósofo à força da sua imaginação verbal, complementada pelo puro prazer de contar histórias. Cada novo livro de António Torrado, hábil manejador da língua de Camões, de cujas potencialidades plásticas e expressivas detinha elevada consciência, é muito mais do que a história que se conta ou se reconta: é um exercício superior de inteligência, aberto à sedução dos registos poéticos e ao humor.
Da frondosa árvore da literatura portuguesa, fixou-se no ramo que mais desconsideração enfrentou ao longo da história: a literatura para crianças e jovens (a designação, contestada pelo próprio, é de uma controvérsia insuperável). Torrado, que nos deixa um legado de muita uva e pouca parra, nunca parou de refletir sobre a importância da literatura Infantil e o papel menor que alguns insistem em destinar-lhe, como se se tratasse de um ramo frágil, fraquinho, escusado, facto que atribuía por um lado “à quantidade de textos medíocres que se têm refugiado sob esta designação e por outro à falta de abundante crítica e investigação”.
A sua literatura destina-se, não apenas aos mais novos, mas a quem a quiser ler. Por exemplo, a história de Dom Pimpão Saramacotão e seu criado Pimpim, que poderá servir a miúdos e a muito graúdo, até da nossa Academia. O enredo é curto e linearíssimo: um fidalgo, cheio de terras e “dinheirame”, recusava toda a linguagem comum. A criadagem do paço, fartinha de tanta eloquência presumida, tanta fala empolada, tanta palavra balofa, tanto latinório, abandonou o castelo, deixando o nobre aos cuidados de Pimpim Saramacotim, rapazola que, não só se habituara às extravagâncias linguísticas de Dom Pimpão, como se deixou contagiar. A história acaba com o castelo em cinzas, na sequência de um grande incêndio provocado por um gato ao qual os miúdos da aldeia, por galhofa, ataram um feixe de palha ao rabo que se enxameara ao passar sobre uma braseira. O serviçal, vendo o fumo, deu o alerta, procurou avisar o amo, rejeitando o comum “Fogo! Fogo!”. Falou, falou mas não comunicou: “- Levantai-vos, primus inter-pares, que já se foi um papa-inrate por a fumácia acima e está saltaricando na cobertura, com um escaramulo no rabo. Se não acudis com a abundância, está a ganância perdida. Calçai as vossas tiras e viras, primus inter pares, e as vossas salperquitates. Abundância, senhor! Abundância!”.
A sua vastíssima produção literária nesta área foi distinguida, em 1988, com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para crianças. Torrado, que fundou e dirigiu a Plátano Editora, escreveu mais de mil histórias, sem cedências ao imediato e à facilidade, libertas de infantilismos e puerilidades. Ultrapassada a centena de livros publicados, ainda pensou em “fechar a loja”, mas as solicitações continuavam. Foi intensa a relação que manteve com a educação e o ensino, quer como professor e autor de manuais, quer pelas opiniões que expressou na imprensa, quer ainda na formação de professores em Portugal e em missões de cooperação nos PALOP. Foi produtor principal e chefe do Departamento de Programas Infantis da RTP.
Na sua ampla tábua bibliográfica, a somar perto de centena e meia de livros, contam-se, naquele domínio, títulos marcantes, alguns dos quais fizeram as delícias de gerações sucessivas de leitores: Pajem Não se Cala (1981), O Mercador de Coisa Nenhuma (1983), livro incluído, em 1995, no The White Ravens da Internacional Children’s Library in Munich, As Estrelas – Quando os Três Reis eram Príncipes (1996), um livro que fecha, não por acaso, com “algumas considerações e divagações para leitores adultos”, ou, na década seguinte, Ler, Ouvir e Contar (2002). Em 1974 e 1996, livros seus foram incluídos na lista de honra do IBBY – Internacional Board on Books for Young People.
Após a morte de Matilde Rosa Araújo (1921-2010), a quem se referiu como “a patrona que paraninfou gerações e gerações”, António Torrado assumiu o lugar de patriarca da literatura para a gente nova. Defendia que os autores de livros para adultos deviam estar gratos aos escritores de livros que fazem nascer novos leitores: “Eu acho que os escritores exclusivamente para adultos deviam, de vez em quando, agradecer-nos a nós, escritores para os mais novos, o facto de termos conquistado para eles um público de leitores. Porque, se não fossemos nós, escritores de pequenas histórias, nós que gostamos de contar e de ter à nossa volta um público atento, os escritores para adultos, talvez, pudessem sentir também que nós somos a antecâmara de toda a literatura, sendo já literatura”.
Poeta – tão capaz de tropeçar de ternura como de imprimir à sua voz uma entoação irónica de impulso sarcástico –, ensaísta, mas também autor de argumentos para filmes e séries de televisão, de letras de fado, de textos para rádio, António Torrado nunca facilitou a vida daqueles que se comprazem na etiqueta redutora, propondo novas linhagens de textos.
Ser escritor não estava nos seus planos. Tanto assim que tentou estudar Ciências Económicas para dar seguimento à empresa comercial do pai. Tentativa falhada: falta de jeito. Seguiu-se o Direito; aqui, o professor deu um empurrãozinho: “Quando estiver com sono, não venha à aula. É que me desmotiva muito”. Foi então que se decidiu pela Faculdade de Letras de Coimbra, onde estudou Filosofia. O verbo ‘escrever’ cedo se atravessou no seu caminho – “das poucas coisas em que sinto que pouco mais ou menos me ajeito”, disse numa das suas muitas entrevistas, com o humor e a modéstia que o caracterizavam.
Quando, em 1974, ingressou na RTP como chefe do Departamento de Programas Infantis, António Torrado publicara já o seu primeiro livro de poemas, Do Agregado Sentimental (1970), um volume que recusava as normas convencionais da beleza dita “poética”, adotando um registo ajustado ao quotidiano lisboeta e um humor por vezes tingido de negro. Seguiram-se os títulos: Dos Simples e Das Coisas Interiores (1976), Os Silos da Infância (1981), Não se Chama Chama (1984), Dos Templos (1984), Prosaicas (1985). Depois de uma iniciação poética enquadrável no ideário da Poesia 61, António Torrado desenvolve a sua vocação narrativa. A narratividade, a componente lúdica do trabalho poético são aspetos significativos da sua poesia exigente, como comprova a sua prática poética posterior.
De Vítor Ao Xadrez (1984) é o seu primeiro livro de ficção narrativa destinado a adultos. Trata-se de um conjunto de exercícios narrativos sobre a imaginação de diversas modalidades do real, que não cancelam, antes aprofundam, a relação do poeta com o mundo. Pela agilidade, pela irreverência, pela aparente leveza, e até pelo desprendimento assumido que exibem, poderíamos aproximá-los das pequenas ficções de um Alexandre O’Neill.
António Torrado, que no teatro concentrou também a sua atenção, guardou da poesia como exercício solene prudentes distâncias e soube passar ao largo do “tampo gasto do lirismo”. Tinha um sonho secreto, uma ambição maior, o anonimato: “Que uma história só, uma única que fosse, das muitas que lançamos ao vento e que ainda chamamos de nossas, se projetasse por aí além e cirandasse autónoma, de fonte lisa para a aventura dos mitos, perdida, esquecida de quem a gerou”