Cá como na Índia, mais do que uma pandemia


Temos de perceber de vez que uma doença contagiosa e a forma como lhe respondemos depende de conhecer realisticamente os recursos que temos e as vulnerabilidades que existem


Num extenso testemunho, a escritora  Arundhati Roy relatou há uns dias no Guardian o pesadelo que se vive na Índia. Falamos de um país com 1,3 mil milhões de habitantes, 18% da população mundial, onde diariamente morrem mais de 25 mil pessoas por todas as causas e a esperança de vida à nascença ainda é mais de 15 anos inferior à da Europa. Os números da covid-19 têm de ser lidos nessa perspetiva mas não há como não ficar sem palavras quando o oxigénio falta durante uma hora e 20 minutos num hospital privado de Nova Déli, como Roy já relatava e voltou a acontecer este fim de semana, e morrem 12 doentes numa enfermaria, incluindo um médico do hospital, também hospitalizado. Assim, mesmo quem tinha recursos, porque falhou o oxigénio uma hora – como felizmente numa noite de janeiro se conseguiu resolver cá quando a infraestrutura do Amadora-Sintra deu sinais de pressão, sem consequências de maior para os doentes além de serem transferidos a meio da noite para hospitais  com vagas.

Temos de perceber de vez que uma doença contagiosa e a forma como lhe respondemos depende de conhecer realisticamente os recursos que temos e as vulnerabilidades que existem, por isso alguns autores chamam ao que temos vivido, mais do que uma pandemia, uma sindemia: a interação entre a doença, o vírus, e o contexto. Aconteceu e acontece cá na nossa escala, como se viu agora de novo nas habitações “insalubres” de migrantes em Odemira – há um ano, a mesma sobrelotação levou a um aumento de contágios na área metropolitana de Lisboa e ainda assim chegámos aqui com o mesmo problema em Odemira e a ter de encontrar soluções de emergência, como um país de terceiro mundo que aceita que explorações agrícolas ao lado de praias paradisíacas vivam de mão de obra barata até isso pôr em causa o seu postal turístico, como há o ano os hostéis e quartos sobrelotados nos subúrbios de Lisboa. “O sistema não colapsou. O sistema praticamente não existia(…) é o que acontece quando uma pandemia atinge um país com um serviço público de saúde praticamente não existe”, escreve Roy. Felizmente e graças ao empenho de muitos estamos noutro capítulo civilizacional, mas com carências conhecidas, uma população envelhecida e com um grande peso de doença crónica a precisar de resposta e fragilidades que a pandemia trouxe ao de cima. Não podemos deixar de olhar para as nossas lacunas e pensar com prudência nos próximos meses e o próximo inverno. Fiquei surpreendida quando há uns dias uma técnica do ECDC me respondeu que o que a mais a preocupa neste momento é a complacência em relação ao vírus e que não nos podemos esquecer que ainda não estamos livres. É também disso que nos lembra Índia, onde há quatro meses o primeiro-ministro festejava um milagre  e que enquanto tiver uma situação descontrolada pode ser um laboratório de mutações para todo o mundo, como pode ser outro qualquer desses países sem dinheiro para entrar na corrida às vacinas e que são os primeiros a ser afetados quando o maior produtor mundial de vacinas decide travar exportações para mostrar ao mundo mais do que piras a arder. Há um ano o Papa dizia que ninguém se salva sozinho. Continuam a ser palavras certeiras.