Argélia – A crise de um regime ou um regime em crise?


ARGÉLIA – A CRISE DE UM REGIME OU UM REGIME EM CRISE? RESUMO Dois anos passaram já sobre a data que assinalou o início de um movimento popular – HIRAK[1] – que recorria a manifestações de protesto pacíficas ocorridas em território argelino, com o propósito de reivindicar mudanças do sistema político e o respeito pela…


ARGÉLIA – A CRISE DE UM REGIME OU UM REGIME EM CRISE?

RESUMO

Dois anos passaram já sobre a data que assinalou o início de um movimento popular – HIRAK[1] – que recorria a manifestações de protesto pacíficas ocorridas em território argelino, com o propósito de reivindicar mudanças do sistema político e o respeito pela vontade do povo. Este movimento, que mobilizou um número crescente de cidadãos argelinos, teve início em 22 de Fevereiro de 2019, numa primeira reacção ao anúncio de recandidatura a um novo mandato, do então presidente Bouteflika. Agora, e após uma pausa forçada pelo aparecimento da pandemia do COVID-19, as marchas semanais foram retomadas com as ruas da capital e de outras cidades a acolher, de novo, uma população que exige o fim absoluto da interferência militar nos domínios da política, num país onde é crescente o sentimento de revolta.

ANÁLISE

Contrariamente ao sucedido noutros países do Norte de África, para alguns analistas as manifestações populares conhecidas amplamente como Primaveras Árabes, e que tiveram o seu levantamento nos finais de 2010, na Tunísia, poucos efeitos práticos terão tido no sistema político da Argélia. Tal não é, todavia, inteiramente verdade, já que várias foram as acções de protesto registadas por todo o território argelino como reacção à degradação crescente das condições de vida da população e na denúncia de uma corrupção generalizada. De facto, ultimamente a Argélia vive uma situação socioeconómica particularmente difícil, relacionada com uma queda acentuada das receitas provenientes da exportação dos hidrocarbonetos, que representam, actualmente, cerca de 95 por cento das receitas, e das restrições à actividade económica, tendo atingido no final de Janeiro, de acordo com as estimativas governamentais reveladas em Dezembro de 2020, uma taxa média anual da inflação na ordem dos 2,6 por cento, a par da redução de cerca de 500 mil empregos como consequência directa da crise sanitária provocada pelo COVID-19[2]. O declínio dos preços do petróleo acabaria mesmo por reduzir a capacidade do governo de responder às necessidades reclamadas por uma população cada vez mais afectada sob o ponto de vista económico[3].

As crescentes tensões verificadas no seio do regime argelino, acusado de monopolizar as receitas provenientes dos amplos recursos naturais para fins de âmbito clientelista, e na sequência de uma considerável onda de protestos populares, após o anúncio de uma nova recandidatura, resultariam na renúncia do então presidente Abdelaziz Bouteflika, a 2 de Abril de 2019, com o país já em plena crise política, social e económica. Todavia, para o povo argelino as razões que estiveram na base do seu descontentamento mantiveram-se de pé com o declarado declínio das suas condições de vida, agravadas pela contracção da economia e pelos devastadores efeitos da pandemia [COVID-19]. Este cenário foi, de resto, confirmado pelo Relatório de Actividades do Programa da Presidência da República relativo ao ano de 2020, reconhecendo “diversas condicionantes de contexto, tanto nacional como internacional, que influenciaram gravemente as condições de realização das acções integradas no programa do Governo”.

A recente revisão constitucional, sob a bandeira de uma “Nova Argélia”, num referendo marcado por uma baixa participação popular, tem-se revelado ainda longe de corresponder às promessas da liderança argelina, recorrentemente acusada de falta de transparência e de níveis de corrupção preocupantes[4], onde, com base na última pesquisa da Freedom House[5], “as questões de natureza política são, desde há muito, dominadas pela instituição militar” e que “apesar da existência de vários partidos de oposição parlamentar, as eleições são distorcidas por fraude e os processos eleitorais não são transparentes”. No documento são, ainda, denunciadas restrições à liberdade de imprensa e actos de repressão policial sobre os manifestantes. Foi com base em todos estes acontecimentos que as próprias Nações Unidas, através do Porta-voz do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, pediram às autoridades argelinas o fim imediato da “violência contra manifestantes pacíficos e das prisões arbitrárias de membros do movimento pró-democracia HIRAK”[6]. Por tudo isto, e devido a uma aparente falta de consensualidade no seio da esfera governativa, a situação vivida no país tende a agravar-se, o que poderá vir a favorecer os propósitos do movimento de protesto [HIRAK] que tem revelado, contudo, falhas na sua orientação, onde é patente a inexistência de uma liderança capaz de se impor como uma força verdadeiramente reivindicativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Argélia, os anos mais recentes têm sido marcados por uma profunda crise social e económica sem precedentes. Num contexto de indisfarçável dificuldade, as reacções de descontentamento por parte da população começaram a dar sinais de crescente instabilidade, abrindo espaço ao aparecimento, em 2019, de um movimento de contestação que passou a ser identificado como HIRAK. Um dos efeitos imediatos da sua acção seria a renúncia do então presidente Abdelaziz Bouteflika. Todavia, uma trégua em todo o processo reivindicativo do movimento seria imposta pela grave situação sanitária provocada pelo COVID-19. A assinalar a efeméride dos dois anos da sua criação, a confrontação com as autoridades foi retomada. Como resposta, e em defesa do regime, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, tem mostrado sinais de firmeza que passam pela denúncia de actividades oposicionistas que considera “não inocentes” e que “tentam dificultar o processo democrático na Argélia”[7], ao mesmo tempo que acusa o movimento de estar “infiltrado por activistas islâmicos” com ligações à Frente Islâmica de Salvação (FIS), declarada ilegal, a partir de Março de 1992.

Apesar dos inegáveis desafios que irá enfrentar, tanto de natureza interna como externa, são muitos os que acreditam que o movimento tem, desde a sua criação, a enorme virtude de mobilizar a consciência do povo argelino para a necessidade de uma efectiva mudança das bases políticas do actual regime, o que faz acreditar que o diálogo com a liderança do país se mostra cada vez mais inevitável. Nesse sentido, uma pronta e sensata reformulação organizativa e estratégica do movimento parece ser o caminho a seguir para a efectiva materialização dos reais anseios da população argelina.

Lisboa, 20 de Abril de 2021

João Henriques

Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa

Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico

Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris 

[1] Significa Movimento (do árabe).

[2] LE MONDE AFRIQUE, 12 de Abril de 2021.

[3] THE WORLD FACT BOOK. Disponível em: https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/algeria/[Consultado em 20 de Março de 2021].

[4] De conformidade com o ÍNDICE DE PERCEPÇÃO DE CORRUPÇÃO, da Transparency International (https://www.transparency.org/en/cpi/2020/index/dza), a Argélia ocupa a 104ª posição, num total de 180 países analisados.

[5] Disponível em: https://freedomhouse.org/country/algeria/freedom-world/2021.

[6] ONU INFO, 5 de Março de 2021.

[7] LE MONDE AFRIQUE, 7 de Abril de 2021.

 

 

 

 

Argélia – A crise de um regime ou um regime em crise?


ARGÉLIA – A CRISE DE UM REGIME OU UM REGIME EM CRISE? RESUMO Dois anos passaram já sobre a data que assinalou o início de um movimento popular – HIRAK[1] – que recorria a manifestações de protesto pacíficas ocorridas em território argelino, com o propósito de reivindicar mudanças do sistema político e o respeito pela…


ARGÉLIA – A CRISE DE UM REGIME OU UM REGIME EM CRISE?

RESUMO

Dois anos passaram já sobre a data que assinalou o início de um movimento popular – HIRAK[1] – que recorria a manifestações de protesto pacíficas ocorridas em território argelino, com o propósito de reivindicar mudanças do sistema político e o respeito pela vontade do povo. Este movimento, que mobilizou um número crescente de cidadãos argelinos, teve início em 22 de Fevereiro de 2019, numa primeira reacção ao anúncio de recandidatura a um novo mandato, do então presidente Bouteflika. Agora, e após uma pausa forçada pelo aparecimento da pandemia do COVID-19, as marchas semanais foram retomadas com as ruas da capital e de outras cidades a acolher, de novo, uma população que exige o fim absoluto da interferência militar nos domínios da política, num país onde é crescente o sentimento de revolta.

ANÁLISE

Contrariamente ao sucedido noutros países do Norte de África, para alguns analistas as manifestações populares conhecidas amplamente como Primaveras Árabes, e que tiveram o seu levantamento nos finais de 2010, na Tunísia, poucos efeitos práticos terão tido no sistema político da Argélia. Tal não é, todavia, inteiramente verdade, já que várias foram as acções de protesto registadas por todo o território argelino como reacção à degradação crescente das condições de vida da população e na denúncia de uma corrupção generalizada. De facto, ultimamente a Argélia vive uma situação socioeconómica particularmente difícil, relacionada com uma queda acentuada das receitas provenientes da exportação dos hidrocarbonetos, que representam, actualmente, cerca de 95 por cento das receitas, e das restrições à actividade económica, tendo atingido no final de Janeiro, de acordo com as estimativas governamentais reveladas em Dezembro de 2020, uma taxa média anual da inflação na ordem dos 2,6 por cento, a par da redução de cerca de 500 mil empregos como consequência directa da crise sanitária provocada pelo COVID-19[2]. O declínio dos preços do petróleo acabaria mesmo por reduzir a capacidade do governo de responder às necessidades reclamadas por uma população cada vez mais afectada sob o ponto de vista económico[3].

As crescentes tensões verificadas no seio do regime argelino, acusado de monopolizar as receitas provenientes dos amplos recursos naturais para fins de âmbito clientelista, e na sequência de uma considerável onda de protestos populares, após o anúncio de uma nova recandidatura, resultariam na renúncia do então presidente Abdelaziz Bouteflika, a 2 de Abril de 2019, com o país já em plena crise política, social e económica. Todavia, para o povo argelino as razões que estiveram na base do seu descontentamento mantiveram-se de pé com o declarado declínio das suas condições de vida, agravadas pela contracção da economia e pelos devastadores efeitos da pandemia [COVID-19]. Este cenário foi, de resto, confirmado pelo Relatório de Actividades do Programa da Presidência da República relativo ao ano de 2020, reconhecendo “diversas condicionantes de contexto, tanto nacional como internacional, que influenciaram gravemente as condições de realização das acções integradas no programa do Governo”.

A recente revisão constitucional, sob a bandeira de uma “Nova Argélia”, num referendo marcado por uma baixa participação popular, tem-se revelado ainda longe de corresponder às promessas da liderança argelina, recorrentemente acusada de falta de transparência e de níveis de corrupção preocupantes[4], onde, com base na última pesquisa da Freedom House[5], “as questões de natureza política são, desde há muito, dominadas pela instituição militar” e que “apesar da existência de vários partidos de oposição parlamentar, as eleições são distorcidas por fraude e os processos eleitorais não são transparentes”. No documento são, ainda, denunciadas restrições à liberdade de imprensa e actos de repressão policial sobre os manifestantes. Foi com base em todos estes acontecimentos que as próprias Nações Unidas, através do Porta-voz do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, pediram às autoridades argelinas o fim imediato da “violência contra manifestantes pacíficos e das prisões arbitrárias de membros do movimento pró-democracia HIRAK”[6]. Por tudo isto, e devido a uma aparente falta de consensualidade no seio da esfera governativa, a situação vivida no país tende a agravar-se, o que poderá vir a favorecer os propósitos do movimento de protesto [HIRAK] que tem revelado, contudo, falhas na sua orientação, onde é patente a inexistência de uma liderança capaz de se impor como uma força verdadeiramente reivindicativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Argélia, os anos mais recentes têm sido marcados por uma profunda crise social e económica sem precedentes. Num contexto de indisfarçável dificuldade, as reacções de descontentamento por parte da população começaram a dar sinais de crescente instabilidade, abrindo espaço ao aparecimento, em 2019, de um movimento de contestação que passou a ser identificado como HIRAK. Um dos efeitos imediatos da sua acção seria a renúncia do então presidente Abdelaziz Bouteflika. Todavia, uma trégua em todo o processo reivindicativo do movimento seria imposta pela grave situação sanitária provocada pelo COVID-19. A assinalar a efeméride dos dois anos da sua criação, a confrontação com as autoridades foi retomada. Como resposta, e em defesa do regime, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, tem mostrado sinais de firmeza que passam pela denúncia de actividades oposicionistas que considera “não inocentes” e que “tentam dificultar o processo democrático na Argélia”[7], ao mesmo tempo que acusa o movimento de estar “infiltrado por activistas islâmicos” com ligações à Frente Islâmica de Salvação (FIS), declarada ilegal, a partir de Março de 1992.

Apesar dos inegáveis desafios que irá enfrentar, tanto de natureza interna como externa, são muitos os que acreditam que o movimento tem, desde a sua criação, a enorme virtude de mobilizar a consciência do povo argelino para a necessidade de uma efectiva mudança das bases políticas do actual regime, o que faz acreditar que o diálogo com a liderança do país se mostra cada vez mais inevitável. Nesse sentido, uma pronta e sensata reformulação organizativa e estratégica do movimento parece ser o caminho a seguir para a efectiva materialização dos reais anseios da população argelina.

Lisboa, 20 de Abril de 2021

João Henriques

Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa

Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico

Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris 

[1] Significa Movimento (do árabe).

[2] LE MONDE AFRIQUE, 12 de Abril de 2021.

[3] THE WORLD FACT BOOK. Disponível em: https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/algeria/[Consultado em 20 de Março de 2021].

[4] De conformidade com o ÍNDICE DE PERCEPÇÃO DE CORRUPÇÃO, da Transparency International (https://www.transparency.org/en/cpi/2020/index/dza), a Argélia ocupa a 104ª posição, num total de 180 países analisados.

[5] Disponível em: https://freedomhouse.org/country/algeria/freedom-world/2021.

[6] ONU INFO, 5 de Março de 2021.

[7] LE MONDE AFRIQUE, 7 de Abril de 2021.