Brasil. “Os crimes contra opositores na ditadura foram estendidos para a parcela negra e pobre da população”

Brasil. “Os crimes contra opositores na ditadura foram estendidos para a parcela negra e pobre da população”


Os batalhões mais sangrentos da PM e os “esquadrões da morte” que antecederam as milícias saíram dos porões da ditadura. A caça aos guerrilheiros virou caça aos bandidos e vice-versa. Quem paga o preço é sobretudo quem vive no morro da favela, longe do asfalto, concordam investigadores e sobreviventes, ao i.


A ditadura militar brasileira (1964-1985), que torturou mais de 20 mil pessoas, e assassinou ou fez “desaparecer” outras 434, segundo a Human Rights Watch, afinal não foi mais que as forças armadas “assumindo a responsabilidade de pacificar o país”, ouviu-se de novo nos quartéis. Era 31 de março, aniversário do golpe, e escutava-se um comunicado do ministro da Defesa, o general Walter Souza Netto, que tomou posse após a demissão do seu antecessor e dos chefes dos três ramos das forças armadas, em simultâneo, em protesto contra a politização dos militares pelo Presidente Jair Bolsonaro. Por todo o país, gritou-se contra o saudosismo, recusando regressar ao passado – mas, para quem observa os avanços das milícias, um fenómeno vindo desses tempos sombrios, bem como a impunidade da polícia militar ao “pacificar” favelas, é óbvio que o legado da ditadura ainda é algo do presente.

Num país onde os dirigentes da ditadura nunca foram responsabilizados pelos seus crimes, conseguindo passar o poder para mãos civis – sem qualquer rutura, ao contrário do que se viu em Portugal com o 25 de Abril – e até aprovar uma Lei de Amnistia para si mesmos, em 1979, “a participação militar no dia-a-dia continuou grande, face à criminalidade crescente no Brasil, por intermédio das polícias militares. E é uma participação invariavelmente muito violenta”, salienta Oscar Vilhena Vieira, diretor da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. “Aqueles crimes que ocorriam contra os opositores durante o regime militar, de facto foram estendidos para a parcela pobre e negra da população”.

É que “as polícias militares eram forças auxiliares, aquarteladas, que passaram a funcionar como polícia nas ruas, como polícia de vigilância e repressão quotidiana ostensiva, apenas durante a ditadura”, lembra o sociólogo Michel Misse, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por email. “Foi a sua entrada no policiamento que reforçou a conceção militarista que ainda permanece nas polícias de rua e nas chamadas operações policiais, com armamento de guerra, helicópteros, etc”.

À luz dessa doutrina de segurança pública, que está sobretudo nas mãos dos estados brasileiros, o morro da favela passou a ser, na prática, território inimigo, onde se mata ou morre. Em cidades como São Paulo, a polícia é a principal causa de morte violenta de crianças e adolescentes. Os números mostram uma verdadeira epidemia – entre 2015 e 2020, na capital paulista, 581 jovens foram abatidos por polícias civis ou militares, comparados com os 504 homicídios de menores nesse período, segundo o Comité Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, num relatório divulgado o mês passado. Sem contar com as mortes às mãos de agentes fora de serviço, seja a trabalhar como seguranças privados ou em crimes relacionados com as milícias.

A escala da violência policial em São Paulo é frequentemente associada às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), um batalhão de elite da polícia militar, conhecido como o mais sanguinário da corporação. Aliás, foi o batalhão que mais matou em 2019, abatendo 101 pessoas, quase o dobro das 51 mortes no ano anterior, segundo o relatório anual da Ouvidoria das Polícias.

A história da ROTA está manchada de sangue. Segundo testemunhas, polícias do batalhão foram os primeiros a abrir fogo no massacre do Carandiru, em 1992, onde foram mortas 111 pessoas, todas presidiários. De resto, a sua estrutura é uma herança direta da ditadura – a ROTA foi encarregue de enfrentar a guerrilha contra o regime, nos anos 70, tendo muitos dos seus agentes associados aos “esquadrões da morte”, mantendo desde então o seu poder de fogo e táticas militarizadas.

O nascer do bicho

Quando falamos de milícias, poucas alcançaram a sofisticação do “escritório do crime”, composto sobretudo por antigos polícias militares, dedicados à exploração de imóveis ilegais, grilagem – ou seja, falsificação de documentos de propriedade, para tomar terrenos – e assassínios por encomenda. Recorrendo às táticas, equipamento e treino adquirido nas corporações policiais, o esquadrão – com o qual Flávio Bolsonaro, filho do Presidente, é acusado de ter ligações, através de negócios imobiliários, tendo outro dos seus filhos, Renan, chegado a namorar com a filha de um alegado cabecilha do grupo, Ronnie Lessa – é suspeito de dezenas de homicídios, inclusive da vereadora Marielle Franco. Contudo, mesmo as malfeitorias do “escritório do crime” empalidecem em comparação com os seus antecessores, os infames “esquadrões da morte”, que se tornariam os grandes operacionais da tortura na ditadura militar.

É uma história que vem de trás, do início da década de 1960, quando o Rio de Janeiro ainda era a capital do Brasil. Nesse tempo de golpes e contragolpes, “havia essa tensão da Guerra Fria, revolução em Cuba, queria-se investigações políticas contra comunistas”, explica Bruno Paes Manso, investigador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, autor de A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Todavia, 2020). “Como a policia na capital era muito desestruturada, o exército colhia muitas dessas informações com os apontadores do jogo do bicho”, conta Manso, referindo-se às lotarias ilegais que fazem as delícias de tantos brasileiros – o nome “bicho” vem da primeira lotaria do tipo, criada pelo barão de Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, em 1892, para incentivar o público a visitar o zoo, mas o jogo tornou-se uma febre tão grande que teve de ser proibido. 

“O jogo sempre foi visto com uma certa benevolência, como um crime menor, sempre teve uma grande simpatia da sociedade e das elites”, salienta o investigador. “É como se o jogo não pudesse ser comparado com o tráfico, com esses traficantes armados, negros. Junta o racismo estrutural ao medo da pobreza e da ignorância”. É dessa relação entre polícias corruptos e “bicheiros” – que frequentemente complementavam o jogo ilegal com atividades como a extorsão ou proxenetismo – que, nos tempos da ditadura, surgem os chamados “esquadrões da morte”, referência às iniciais do infame Esquadrão Motorizado, EM, do Rio de Janeiro.

O fenómeno rapidamente ganhou lastro em cidades por todo o país, com particular destaque para São Paulo. Aí, estes grupos paramilitares eram encabeçados pelo delegado Sérgio Fleury, deixando um rasto de centenas de corpos na periferia da cidade, muitos deles com sinais de tortura, acompanhados por um cartaz com uma caveira e dois ossos cruzados, acusando-os de ser bandidos e revelando o nome das próximas vítimas. Ironicamente, uns anos mais tarde, o próprio Fleury seria acusado pelo Ministério Público de vender proteção e assassínios a soldo a traficantes de droga, ao mesmo tempo que tinha nas mãos o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), a polícia política.

Estes “esquadrões da morte” vieram mesmo a calhar quando o regime militar se confrontou com resistência de guerrilhas urbanas, a partir de 1967. Foi protagonizada por grupos como a Ação Libertadora Nacional (ALN), uma cisão do Partido Comunista Brasileiro (PCB) fundada por Carlos Marighella. Lançaram uma onda de ações armada, financiadas por assaltos a bancos, bem como raptos de diplomatas, empresários ligados ao regime e dirigentes políticos.

“Quando a gente começa a fazer resistência armada, criam a figura do terrorista. Fomentaram um imaginário popular em que o terrorista era o inimigo”, conta Celso Antunes Horta, que integrou o Grupo Tático Armado da ALN em São Paulo (entrevista nas páginas 20-23). Combateu até ser capturado, em 1969, acabando torturado pela Operação Bandeirantes – uma operação dos militares, a que se juntaram os polícias de Fleury, que tinha entre os seus dirigentes o coronel Carlos Ustra, elogiado por Bolsonaro no voto pelo impeachment de Dilma Rousseff – e esteve preso durante oito anos.

“Quando eles começam a nos derrotar, do ponto de vista da guerrilha, os bandidos ocupam de certa forma esse espaço. Essa história do ‘bandido bom é bandido morto’ começa a pegar mais”, recorda Horta. “Mas, mesmo quando nós estávamos agindo, eles estavam matando bandidos também. Os esquadrões da morte até pegavam os bandidos na cadeia e matavam”.

Essa foi uma dinâmica que se aprofundou nas décadas seguintes, acompanhando a transformação do próprio Brasil, lembra o sociólogo Michel Misse. “A ditadura coincide com uma rápida transformação na sociedade brasileira, de um país eminentemente agrário para um país cada vez mais urbano. A migração interna foi intensificada a partir dos anos 50. E a receção dos migrantes de vários estados, que afluíam para a capital de seu estado ou para o Rio de Janeiro e São Paulo, foi muito improvisada, deixando-os à margem, junto com as populações que resultaram da abolição da escravatura”, explica. Com o aumento da desigualdade, durante a ditadura, veio o aumento da criminalidade, numa altura em que a brutalidade do Estado estava no seu expoente máximo. Gerando um “ciclo vicioso” de violência entre criminosos e polícias, uma “acumulação social da violência”, nas palavras de Misse. 

Quando começa o processo de transição para a democracia, na década de 80, pouco a pouco esse aparato de brutalidade policial e “esquadrões da morte” foi-se pulverizando. Mantendo-se, ainda assim, bem alicerçado nas corporações, sem qualquer limpeza dos seus quadros ou responsabilização, graças à Lei da Amnistia – tornando as suas dinâmicas ainda mais complexas. E o dinheiro vindo de atividades ilícitas, como o jogo do bicho, continuava a entrar. 

“Ao mesmo tempo que os bicheiros pagavam para poder vender o jogo ou explorar máquinas de caça-níquel, em diversos territórios eles lavavam o dinheiro investindo nas escolas de samba”, conta Bruno Paes Manso. “Nessas escolas, durante o desfile, que é um produto internacional brasileiro, é uma coisa que todo o brasileiro gosta, os camarotes iam para procuradores, juízes, políticos, celebridades. Essa relação sempre foi tranquila e tolerada”.

Há coisas que não mudam. O jogo do bicho continua a movimentar uns 12 mil milhões de reais por ano (quase 1,8 mil milhões de euros), segundo estimativas Instituto Jogo Legal, enquanto os caça-níquel, ou slot machines ilegais, geram outros 3,6 mil milhões de reais (mais de 500 milhões de euros). Aliás, o líder apontado do “Escritório do Crime”, Adriano Nóbrega, é acusado pela justiça de estar profundamente envolvido com o bicho. Enquanto o seu comparsa Ronnie Lessa perdeu uma perna e um filho em atentados à bomba, durante uma guerra entre bicheiros no Rio Janeiro, quando trabalhava como guarda-costas de um dos chefes de fação. 

Medo e tortura

A brutalidade do Estado brasileiro não é herança exclusiva da ditadura militar. É algo que tem raízes na própria génese da nação, desde “a tradição inquisitorial praticada pelo Tribunal do Santo Ofício durante a colónia, que, através do Direito Canónico, chegou a influenciar práticas judiciais”, lembra o sociólogo Michel Misse. Algo a que se somou a “longa história de formação da polícia brasileira, o seu papel de controle de escravos e ex-escravos durante o Segundo Império (1840-1889), o novo papel de controle de ex-escravos e populações marginalizadas durante a República Velha (1889-1930)”.

“Essa tradição impregnou a polícia brasileira desde quando passou a ser instada a controlar pretos ex-escravos, pobres em geral e os “subalternos rebeldes”, malandros, vadios, rufiões, ladrões, vigaristas”, escreve o sociólogo. Aliás, “no Rio de Janeiro do início do século XIX, jovens imigrantes portugueses, praticantes da capoeira, caíram também na suspeição da polícia e passaram a frequentar as fétidas dependências de delegacias e prisões”.

Com a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), um simpatizante do fascismo que se reinventou como “pai dos pobres”, conseguindo voltar ao poder através de eleições, em 1951, o Estado “passou a usar a tortura para presos políticos da elite e da classe média, quando antes era reservada aos presos comuns pobres”, nota Misse, que associa esse período à “persistência de uma mentalidade repressiva que vem até aos dias de hoje”. Já a ditadura militar de 1964, “além de aprofundar o arbítrio junto às camadas populares, a polícia, e não apenas a polícia, as Forças Armadas também, resgataram a tortura como técnica de investigação e punição, usando-a em jovens de classe média e intelectuais que se levantaram contra o regime”.

A questão é que, entre todas estas feridas da história, a da ditadura nunca sarou, nota Oscar Vilhena Vieira. “Há uma larga permanência desse legado durante as décadas seguintes de democracia”, lamenta o professor de Direito. “O Brasil não foi capaz de impor uma interdição na violência do Estado, não houve punição aos que fizeram isso. E isso manteve uma cultura da violência”, explica. “No Brasil existe um Estado de direito para aqueles que estão no asfalto, que são brancos, que têm uma vida no mercado. E um Estado de exceção para aqueles que moram nas periferias sociais. A aplicação da lei não trata todos de forma igual. A meu ver, esse é o legado de um regime autoritário que persiste nos dias de hoje”.

Com Jair Bolsonaro na presidência, um antigo capitão que durante décadas ofereceu apoio político às milícias, a sensação é de ver um fantasma sair de uma tumba, às costas do medo da insegurança no Brasil. “Há um fato real, que é que há índices muito altos de criminalidade. Ao longo desses trinta anos os índices foram ascendentes, o Brasil teve uma média de quase 50 mil mortos por ano por homicídio. Não se deve negar o problema, o problema existe”, considera Vieira. “Alguns estados conseguiram uma redução muito grande dessa violência, mas isso não se deu com o aumento da violência policial. Deu-se com políticas públicas mais racionais, sensatas, com melhor treinamento dos policiais e políticas sociais”.

“Essa sensação de insegurança, de medo, ela favorece sempre uma retórica da violência por parte do Estado. Surge a acusação de que os direitos humanos dificultam o trabalho da polícia. Essa retórica foi apropriada para extrema-direita crescer. E isso vem com um certo saudosismo de que antes era melhor”, lamenta Vieira. Para quem sobreviveu à ditadura militar, como Michel Misse, a promessa é não esquecer o que aconteceu.

“Não fui dos que mais sofri. Fui detido, sequestrado, ameaçado de morte, torturado em quartel do Exército mas não permaneci mais que um dia preso, não havia nada contra mim a não ser delações obtidas sob tortura. Mas muitos colegas, companheiros e amigos morreram ou foram presos por longos períodos. E minha participação na luta contra a ditadura foi na luta de massas, não na luta armada”, conta o sociólogo. “Quanto ao governo que celebra o horror, tenho por ele desprezo. E, sinceramente, terei todo o empenho que me for possível aos setenta anos, para trazer de volta o jovem de 17 e ir às ruas (após a pandemia) para combatê-lo”.

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