O ocaso do Direito Constitucional


Temos agora uma nova doutrina de que o poder político não é afinal limitado pelo Direito Constitucional, e que pelo contrário é o Direito Constitucional que deve ser limitado pelas conveniências políticas.


No passado dia 2 de Abril o país político festejou os 45 anos da aprovação da actual Constituição de 1976. É, no entanto, manifesto que esses festejos ocorreram num momento particularmente complexo de vigência da Constituição. Basta ver que já vamos no 14º estado de emergência em pouco mais de um ano, vendo os cidadãos os seus direitos constitucionais sistematicamente suspensos, quando o estado de emergência é, nos termos da Constituição, uma medida excepcional que apenas pode ocorrer transitoriamente, devendo ser prontamente retomada a normalidade constitucional. O que se passa, no entanto, é que o estado de emergência é sistematicamente prorrogado e mesmo, quando ocorreu o seu levantamento, a normalidade constitucional não é restabelecida, continuando os cidadãos a ser privados dos seus direitos fundamentais.

Há que recordar que, há cerca de um ano, a 27 de Abril de 2020, quando foi levantado o estado de emergência, o primeiro-ministro referiu mesmo que “o confinamento é para manter, diga o que disser a Constituição”. Quando confrontado com as dúvidas de constitucionalidade de impor confinamentos e restrições à circulação das pessoas fora do estado de emergência, limitou-se a responder: “Eu também sou jurista e sei a capacidade enorme que os juristas têm de inventar problemas. Felizmente, a realidade da vida é muitíssimo mais prática”.

E foi assim, com base na realidade da vida, que o país assistiu a enormes limitações aos direitos fundamentais dos cidadãos, com base em simples resoluções do Conselho de Ministros ou até de Governos Regionais, sem qualquer controlo parlamentar ou sequer promulgação pelo Presidente da República. E tudo isto ocorreu sem que nenhuma entidade com competência para tal viesse solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade destas medidas. Apenas os tribunais, devido à intervenção dos advogados, puderam travar os casos mais graves de violação dos direitos fundamentais.

Agora, no entanto, foi suscitada a inconstitucionalidade de diplomas com fundamento na violação da proibição constitucional de os deputados no ano em curso aprovarem leis que aumentem o volume de despesa previsto no orçamento de Estado. Sendo estas leis manifestamente inconstitucionais, o Presidente veio a promulgá-las com base no que o primeiro-ministro qualificou como uma “interpretação criativa”. Mas os limites da criatividade dessa interpretação foram de tal forma evidentes que o Presidente da República, na mensagem em que justificou a promulgação, reconhecendo que o Governo poderia solicitar a fiscalização sucessiva dessas leis ao Tribunal Constitucional, o aconselhou a não o fazer por “não ter maioria parlamentar absoluta”, sensibilizando-o antes para “o diálogo com as oposições”. O Presidente da República inaugurou assim uma nova vertente na fiscalização da constitucionalidade: não só não remete os diplomas para o Tribunal Constitucional como também aconselha a que isso não seja feito por quem tem competência para a fiscalização sucessiva.

O primeiro-ministro recusou, no entanto, esse conselho e esquecendo a sua posição anterior de que os juristas serviam era para inventar problemas, quando a realidade da vida era muitíssimo mais prática, mandou mesmo as leis para o Tribunal Constitucional, argumentando que “lei é lei e a Constituição é a lei suprema”. Há que louvar esta nova perspectiva do primeiro-ministro sobre a inconstitucionalidade das normas. Só é pena que, de facto, com o tradicional atraso que o Tribunal Constitucional leva a decidir casos de fiscalização sucessiva, uma decisão sobre estas leis só esteja prevista para o final de 2022. Assim, quando o Orçamento para 2021 for uma lembrança distante, é capaz de surgir uma decisão do Tribunal Constitucional sobre se os deputados o violaram com as leis que aprovaram, decisão que, como é evidente, não terá efeito prático algum.

Talvez por isso, o Presidente da República, confrontado com as acusações de que tinha promulgado leis inconstitucionais, veio responder que “é o Direito que serve a política e não a política que serve o Direito”. Temos agora uma nova doutrina de que o poder político não é afinal limitado pelo Direito Constitucional, e que pelo contrário é o Direito Constitucional que deve ser limitado pelas conveniências políticas. O que estamos a assistir, desde que surgiu a pandemia, é assim ao ocaso do nosso Direito Constitucional.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


O ocaso do Direito Constitucional


Temos agora uma nova doutrina de que o poder político não é afinal limitado pelo Direito Constitucional, e que pelo contrário é o Direito Constitucional que deve ser limitado pelas conveniências políticas.


No passado dia 2 de Abril o país político festejou os 45 anos da aprovação da actual Constituição de 1976. É, no entanto, manifesto que esses festejos ocorreram num momento particularmente complexo de vigência da Constituição. Basta ver que já vamos no 14º estado de emergência em pouco mais de um ano, vendo os cidadãos os seus direitos constitucionais sistematicamente suspensos, quando o estado de emergência é, nos termos da Constituição, uma medida excepcional que apenas pode ocorrer transitoriamente, devendo ser prontamente retomada a normalidade constitucional. O que se passa, no entanto, é que o estado de emergência é sistematicamente prorrogado e mesmo, quando ocorreu o seu levantamento, a normalidade constitucional não é restabelecida, continuando os cidadãos a ser privados dos seus direitos fundamentais.

Há que recordar que, há cerca de um ano, a 27 de Abril de 2020, quando foi levantado o estado de emergência, o primeiro-ministro referiu mesmo que “o confinamento é para manter, diga o que disser a Constituição”. Quando confrontado com as dúvidas de constitucionalidade de impor confinamentos e restrições à circulação das pessoas fora do estado de emergência, limitou-se a responder: “Eu também sou jurista e sei a capacidade enorme que os juristas têm de inventar problemas. Felizmente, a realidade da vida é muitíssimo mais prática”.

E foi assim, com base na realidade da vida, que o país assistiu a enormes limitações aos direitos fundamentais dos cidadãos, com base em simples resoluções do Conselho de Ministros ou até de Governos Regionais, sem qualquer controlo parlamentar ou sequer promulgação pelo Presidente da República. E tudo isto ocorreu sem que nenhuma entidade com competência para tal viesse solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade destas medidas. Apenas os tribunais, devido à intervenção dos advogados, puderam travar os casos mais graves de violação dos direitos fundamentais.

Agora, no entanto, foi suscitada a inconstitucionalidade de diplomas com fundamento na violação da proibição constitucional de os deputados no ano em curso aprovarem leis que aumentem o volume de despesa previsto no orçamento de Estado. Sendo estas leis manifestamente inconstitucionais, o Presidente veio a promulgá-las com base no que o primeiro-ministro qualificou como uma “interpretação criativa”. Mas os limites da criatividade dessa interpretação foram de tal forma evidentes que o Presidente da República, na mensagem em que justificou a promulgação, reconhecendo que o Governo poderia solicitar a fiscalização sucessiva dessas leis ao Tribunal Constitucional, o aconselhou a não o fazer por “não ter maioria parlamentar absoluta”, sensibilizando-o antes para “o diálogo com as oposições”. O Presidente da República inaugurou assim uma nova vertente na fiscalização da constitucionalidade: não só não remete os diplomas para o Tribunal Constitucional como também aconselha a que isso não seja feito por quem tem competência para a fiscalização sucessiva.

O primeiro-ministro recusou, no entanto, esse conselho e esquecendo a sua posição anterior de que os juristas serviam era para inventar problemas, quando a realidade da vida era muitíssimo mais prática, mandou mesmo as leis para o Tribunal Constitucional, argumentando que “lei é lei e a Constituição é a lei suprema”. Há que louvar esta nova perspectiva do primeiro-ministro sobre a inconstitucionalidade das normas. Só é pena que, de facto, com o tradicional atraso que o Tribunal Constitucional leva a decidir casos de fiscalização sucessiva, uma decisão sobre estas leis só esteja prevista para o final de 2022. Assim, quando o Orçamento para 2021 for uma lembrança distante, é capaz de surgir uma decisão do Tribunal Constitucional sobre se os deputados o violaram com as leis que aprovaram, decisão que, como é evidente, não terá efeito prático algum.

Talvez por isso, o Presidente da República, confrontado com as acusações de que tinha promulgado leis inconstitucionais, veio responder que “é o Direito que serve a política e não a política que serve o Direito”. Temos agora uma nova doutrina de que o poder político não é afinal limitado pelo Direito Constitucional, e que pelo contrário é o Direito Constitucional que deve ser limitado pelas conveniências políticas. O que estamos a assistir, desde que surgiu a pandemia, é assim ao ocaso do nosso Direito Constitucional.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990