Votos, tribunais e traficantes de falsidades


Em vez de deixarem para a justiça o que à justiça pertence, as oposições de esquerda ou de direita não se têm poupado a esforços para mitigar a fronteira entre os dois mundos.


2021 é ano de eleições autárquicas. É o maior, mais abrangente e mais democrático escrutínio que tem lugar em território nacional. Milhares de candidatos, independentes ou dos partidos, abraçam as causas das suas comunidades e submetem-se ao escrutínio público.

Este é também o tempo em que os governos locais se esforçam por mostrar aos eleitores que são merecedores da sua confiança para um novo mandato. Inversamente, as oposições tentam provar que os governos já não servem e que as mudanças são urgentes e necessárias. É neste quadro democrático vibrante, de saudável confronto de interesses divergentes, que os eleitores fazem as suas escolhas. Ou era.

Vivemos hoje, tristemente, num quadro de regressão democrática. De degeneração da liberdade. O fanatismo e o terrorismo político tomaram há muito conta do espaço público. A cortesia republicana deu lugar à violência verbal; a troca de ideias e propostas políticas cedeu perante o rastejante ataque pessoal; o combate no púlpito da república foi substituído por mentiras e fabricações postas a circular por cobardes nas redes sociais. Os menos cobardes, mas igualmente mal formados, assumem que o medo é o seu projeto político. Preenchem o vazio de valores com a mentira, com a falsidade. Com a reprodução deliberada da ignorância como meio para denegrir opositores e conquistar simpatias.

A vida na cidade, a república original, não pode ficar refém desta mediocridade lamacenta. Este não pode ser o novo normal da vida política. Rejeito liminarmente que seja esse o nosso destino. O primeiro passo é denunciar os responsáveis.

Carl von Clausewitz dizia, famosamente, que a guerra é a continuação da política por outros meios. Mesmo sem se terem encontrado com Clausewitz, muitos operadores políticos descobriram que a justiça pode ser outro meio para continuação da política.

Em vez de deixarem para a justiça o que à justiça pertence, as oposições de esquerda ou de direita não se têm poupado a esforços para mitigar a fronteira entre os dois mundos. Incapazes de fazer política, incompetentes para mobilizar o eleitorado, estas oposições encontram no expediente da denúncia às autoridades uma tentativa de fragilizar os poderes executivos. Este modus operandi explica-se em cinco passos: (1) pega-se num tema que seja sexy mas suficientemente complexo para que a verdade não seja imediatamente acessível ao público; (2) faz-se uma denúncia, quase sempre anónima, às autoridades; (3) perante denuncia as autoridades são obrigadas a fazer o seu trabalho e, naturalmente, investigam; (4) os mesmos autores da denúncia sopram aos media a investigação em curso, sabendo que estes são sempre muito mais agressivos no escrutínio aos governos do que na fiscalização das oposições; (5) em vez de serem os denunciantes a provar a ilicitude que bradam, passam a ter de ser os governos a provar a legalidade do que fizeram carregando, durante anos, acusações infundadas. Aproveitando o balanço da sabedoria popular – “onde há fumo, há fogo” – as oposições teimam em tentar degradar os fundamentos do poder executivo por este caminho perigoso de acusação e julgamento sumário na praça pública. Esta gente tem de ser denunciada. Em primeiro lugar, porque é incompetente: a política faz-se em nome próprio, não por interpostas pessoas ou instituições. Em segundo lugar, e mais importante do que isso, porque é gente que presta um péssimo serviço à democracia: ao envolver a justiça na guerrilha política; ao dispersar os parcos recursos judiciais criando fait divers, subtraindo meios de processos verdadeiramente importantes; ao enlamear as instituições ferindo a sua legitimidade.

Eu não estou a dizer que todos os presidentes de câmara são santos e que todas as oposições são demónios. Mas a verdade é que este fenómeno se passa por todo o país, com autarcas de todos os partidos e movimentos independentes.

O caso de Cascais é absolutamente e paradigmático. Dele dou aqui alguns exemplos para se perceber a dimensão deste ataque simultâneo à justiça, à política e às instituições democráticas.

Em julho de 2017, a dois meses das eleições autárquicas desse ano, seguindo o manual de guerrilha que há pouco detalhei, alguns jornais chamam às suas primeiras páginas “buscas da PJ à câmara municipal de Cascais.” A oposição, capitaneada pela errática candidata Gabriela Canavilhas, festeja. Mas não se fica por aí e atira mais lama para a ventoinha. O processo só agora foi arquivado, mas eu, o meu executivo e a câmara que lidero, carregámos durante anos o peso da suspeição.

Setembro de 2017. Estamos em cima das eleições. A dias de abrirem as urnas. Num sprint final para baralhar os cidadãos, o cabeça de lista por um movimento independente ligado à direita radical, que em 2013 tinha sido barrado de ir a eleições pelos tribunais por se ter apresentado com assinaturas falsificadas – lança uma denúncia sobre alegadas ilegalidades no PDM nos processos da Praça de Touros, Marina e Entrada de Cascais – dossiers habituais na dinâmica política local. O Ministério Público concluiu pela legalidade de todos os atos praticados e, em conformidade, o processo foi arquivado.

No mandato anterior, fui alvo de seis participações na justiça por parte dos vereadores do PS e do PCP, 75% das quais no ano das eleições. Relativamente a todas essas denúncias – com suspeições sobre tudo e sobre nada, desde contratos celebrados a obras – foi produzido, depois de investigado, despacho de arquivamento pelo tribunal competente.

Nesse mesmo ano da graça eleitoral de 2017, penderam sobre mim 19 (!!!) queixas na Comissão Nacional de Eleições, uma delas visando até o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Ao dia de hoje, onze dessas queixas já foram arquivadas.

Como Churchill notava, “a mentira dá uma volta inteira ao mundo antes de a verdade ter tempo de se vestir.” Ouço muita gente indignada com as notícias falsas, com os factos fabricados e com a degradação democrática. Mas, honestamente, o que é que todas essas vozes têm feito para as combater?

As eleições estão ao virar da esquina. Se queremos proteger o funcionamento independente da Justiça, se queremos credibilizar a política, se queremos reforçar as instituições democráticas e se queremos proteger a essência do Estado de Direito, não podemos continuar a dar palco aos que, por incapacidade e incompetência, se limitam a fazer política por interposta pessoa. A política não pode resumir-se a um ciclo em que se acusa primeiro e se aguarda anos para arquivar depois.

Com mais escrutínio da oposição, com menos sensacionalismo noticioso, com consequências legais para os traficantes de falsidades; com mais seriedade e mais verdade, talvez seja possível construir uma sociedade mais decente tanto para posições, como para oposições.

Quero e desejo eleições autárquicas limpas e vibrantes. Este é o meu primeiro contributo para esse desígnio.

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira