Imaginava que seria veterinária, mas decidiu enveredar pela Medicina, estando agora a estudar Engenharia Biomédica. Os pais não queriam que fizesse do atletismo profissão, mas insistiu. Depois de dar cartas, no decorrer de oito anos, no atletismo, ao serviço da Juventude Operária do Monte Abraão, mudou-se para o Sporting Clube de Portugal em 2010, tendo atingido recordes sucessivos no triplo salto. No início da época de 2020, venceu o Meeting de L’Eure de pista coberta, em França. Volvidos poucos dias, fez 14,28 metros no Meeting de Madrid e foi campeã de Portugal no triplo salto em pista coberta pela sétima vez. Já no verão, em plena pandemia de covid-19, saltou 14,26 metros ao ar livre. Depois de ter estado infetada com o novo coronavírus durante quatro semanas, durante as quais não treinou e sofreu física – principalmente, de dores musculares – e psicologicamente, sagrou-se Campeã de Portugal no triplo salto em pista coberta pela 8.ª vez e conquistou a medalha de ouro na modalidade nos Europeus de Pista Coberta, fixando o recorde nacional desta variante em 14,53m.
Conquistou a medalha de ouro na prova do triplo salto dos Campeonatos da Europa de atletismo em pista coberta, em Torun, na Polónia. Que sabor teve esta vitória?
Esta vitória não pode ser equiparada a um dos momentos mais altos da minha carreira, ou seja, a final dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em que consegui 14,65 metros. Ainda assim, foi a mais emocional porque deu-se um misto de não estar a acreditar naquilo que aconteceu – dadas as condições que vivi no período anterior – e o facto de estar surpreendida tanto quanto os portugueses. E, também, pelo facto de ter conseguido superar tudo e ainda ter saído de lá como campeã. Não estava à espera porque o mais normal seria não ser capaz porque fiquei muito tempo sem treinar.
Que sintomas teve?
A covid-19 afetou-me o sistema muscular e, psicologicamente, estava muito em baixo, passei por stresses, estive mesmo para não ir à Polónia. E havia coisas que não controlava como os testes negativos. Até à última, fiquei triste por ter testes inconclusivos. No sábado, o último dia para fazermos o teste, cancelei outras competições, como o Meeting de Madrid, no final de fevereiro, que era a única hipótese que tinha para me conseguir qualificar para a Polónia e informaram-me de que não poderia viajar com um teste inconclusivo. A minha equipa e o treinador mexeram-se e surgiu a hipótese de ir de carro. Explicámos à organização do Meeting aquilo que estava a acontecer e consegui a autorização. À 1h do dia do encontro, decidimos que partiríamos de carro dali a oito horas. Fiz a marca de qualificação. Ultrapassei as barreiras e diria que a última foi estar presente em Torun.
Foi por isso que chorou ao obter a medalha de ouro, por sagrar-se campeã poucas semanas depois de ter ficado infetada?
Não me expressava há muito tempo e acabei por chorar. A reação dos portugueses foi incrível, nunca senti tanto carinho ou orgulho. Tenho a certeza de que estão a passar por um mau bocado, principalmente, aqueles que ficaram infetados, e isto deu-lhes um bocadinho de alegria. Sinto-me feliz e grata por cada mensagem e demonstração de afeto.
Além disto, obteve o recorde nacional em pista coberta, pois ultrapassou os 14,44 metros que havia saltado no Meeting de Madrid, em fevereiro de 2019. Depois de ter estado fragilizada física e psicologicamente, sente que estas conquistas lhe deram força para continuar a primar pela excelência?
Sem dúvida, mas também não posso esquecer o meu treinador e a minha família que estiveram do meu lado incondicionalmente. Perceberam aquilo que estava a sofrer. A doença foi assustadora porque nunca tive tantas dores musculares. Temi apresentar os sintomas respiratórios, mas não os tive, graças a Deus. Mas, mesmo assim, por volta do oitavo dia, comecei a melhorar. Embora estivesse medicada, já conseguia ir à casa de banho ou ter energia para cozinhar. E percebi que, dali para a frente, seria sempre a subir. Foi uma conjuntura de força que começou a subir, a partir de mim, mas sem a ajuda de quem estava comigo, não sei como teria sido. Tanto os meus familiares como o José Uva acreditaram primeiro do que eu, pois não achei que voltasse à minha forma tão rápido. Questionei-me acerca de coisas aparentemente simples como se correria ou saltaria. Travei uma luta psicológica, ambicionava vencer, mas o meu corpo dizia o contrário.
Em agosto de 2016, nos Jogos Olímpicos do Brasil, ao quinto ensaio, saltou 14,65 metros. Espera atingir novamente este valor ou até ultrapassá-lo?
Obviamente que tenho sempre um objetivo delineado, uma direção definida, sei aquilo que quero fazer. Se fizer 14,66 metros um dia, significa que superarei este recorde. Sinceramente, penso que valho muito mais do que este número. E, com a confiança que ganhei nesta última prova, quero arriscar e sair da minha zona de conforto. O triplo salto é extremamente violento, mas, em Torun, a minha única hipótese de ganhar passou por correr o mais rapidamente possível. Se tivesse feito a época toda limpinha, sem ter estado doente, tenho a certeza de que conseguiria ultrapassar este recorde. Espero aproveitar o embalo que levo deste campeonato para replicar este valor muitas vezes e, nos Jogos Olímpicos de julho, com a adrenalina que lhes está associada, fazer um salto milionário.
Que importância tem para si o facto de ter representado a Juventude Operária do Monte Abraão (JOMA) durante oito anos, entre 2002 e 2010?
Foi o meu primeiro clube, de formação. Na altura, e até hoje, treino com a mesma pessoa, só não o fiz quando fui para os EUA estudar. Mas, nas férias, quando regressava, treinava com o José Uva. Foi um clube que fez toda a diferença na minha vida. Na altura, muitos atletas de elite e de topo passaram pela JOMA, como a Naide Gomes ou a Isabel Abrantes. Estive muito bem entregue. É um clube muito pequeno e, quando estava a entrar no nível mais alto, queria pagar contas de casa, e foi nessa altura que mudei para o Sporting.
Quais são as maiores diferenças que detetou entre os dois clubes, um de cariz regional e outro nacional?
Em termos de energia, não quero distingui-los. Foram momentos diferentes. Na JOMA, cresci com os meus melhores amigos e construí a minha primeira família, o sentimento de união continua lá. No Sporting, estive com uma equipa muito mais madura, com atletas com um percurso longo e isso era motivador porque na JOMA não tinha isso. Ou seja, no Sporting, encontrei o sonho ou a ambição de me tornar uma grande atleta que representa o país. Acho que ambos têm coisas muito boas e a junção dos dois fez a Patrícia atleta que sou hoje. Cada um, durante o seu tempo, forneceu aquilo que podia para melhorar a minha performance como atleta e também como pessoa.
Sempre conjugou a carreira académica com a desportiva e em 2008 ingressou na Universidade Clemson, na Carolina do Sul, para tirar o curso de Medicina. Fez um ano do mesmo também em Portugal e, agora, estuda Engenharia Biomédica.
Quando regressei dos EUA, entendi que o curso de Medicina é diferente. Lá, fazemos quatro anos de pré-medicina e outros quatro de Medical School. Aqui, há um Mestrado Integrado de cinco anos e não existe equivalência. Por isso, e por querer treinar em termos profissionais, que foi aquilo que me trouxe a Portugal em 2012, fiz um pacto com o meu treinador: ele treinar-me-ia até aos Jogos do Rio e iria a uma final olímpica. Para mim era muito difícil conciliar a Medicina com o atletismo, mas percebi que precisava de algo mais para lá do desporto. Então, inscrevi-me neste curso para ter um pouco mais de liberdade. Engenharia é uma vertente mais atual visto que hoje em dia a tecnologia é muito importante, principalmente, com esta pandemia e une-se à Medicina. Infelizmente, parei dois anos porque tenho de me dedicar a 100% ao atletismo, mas espero regressar aos estudos em setembro. Atualmente, frequento o terceiro ano, mas tenho duas cadeiras do segundo por realizar.
Conhecer o corpo humano afigura-se-lhe como essencial sendo atleta? De onde surgiu este fascínio?
Era uma coisa já muito intuitiva porque queria estudar ciências desde muito nova. Queria ser veterinária e, depois, médica. Era uma criança extremamente ativa, mas nunca pensei em atletismo como profissão. A minha mãe é enfermeira e já me incutia o objetivo de salvar o próximo, até porque os meus pais não viam o atletismo como profissão.
Quando se fala em atletismo, os Campeonatos Nacionais Masculinos surgem, muitas das vezes, como as provas mais importantes do país. Acredita que as mulheres, nesta modalidade, são devidamente valorizadas em Portugal?
Acho que no atletismo, em específico, nem sinto muito essa desigualdade. Por exemplo, no futebol, existe uma grande diferença. Nesta modalidade, temos uma equipa, mas, ao mesmo tempo, competimos ao nível individual. Se pensarmos nas medalhas de ouro olímpicas, percecionamos isso: uma é do Carlos Lopes, em 1984, em Los Angeles, outra é da Fernanda Ribeiro, em Atlanta, em 1996, temos uma da Rosa Mota, em Seul, em 1998 e a última é do Nelson Évora, em Pequim, em 2008. Cada vez mais acho que nos aproximamos da igualdade de género porque estamos a mostrar que conseguimos superar-nos. Isto é extremamente importante porque, até há pouco tempo, as mulheres não podiam fazer triplo salto. Provámos o contrário. Creio que estamos a mudar, a ir numa boa direção. E, sempre que uma mulher alcança um feito destes – e incluo-me neste grupo –, outras sentem-se muito mais inspiradas e consciencializam-se de que conseguirão alcançar aquilo que quiserem desde que se esforcem. Não é por outra pessoa dizer que não conseguimos que vamos acreditar nisso. Vamos à luta!
Como moldou o seu espírito de sacrifício?
Julgo que através de um conjunto de fatores internos e externos. Desde muito nova, por exemplo, na escola, percebi rapidamente que conseguiria ter boas notas e que, como consequência, os professores diriam coisas positivas de mim. E eu gostava dessa atenção. Essa noção auxilia-me nas restantes vertentes da minha vida. Quem olha para mim, não me vê como atleta de triplo salto, mas tenho de atingir tanto ou mais quanto atletas que têm os dons naturais para isto. Consigo provar a mim mesma que, com paciência – uma das virtudes que considero ter, porque sei que nada cai do céu –, as coisas acontecem mais tarde ou mais cedo e seremos recompensados. E, mesmo se não formos, sabemos que demos o nosso melhor e devemos estar orgulhosos disso.
Numa época em que se fala tanto do empoderamento feminino e da necessidade das mulheres se fazerem ver e ouvir, alguma vez sentiu que a sua voz foi de algum modo silenciada? Viveu a discriminação por ser mulher?
Pessoalmente, acho que não, porque tenho uma personalidade um bocadinho forte. Quando me dizem algo nesse sentido discriminatório, tento logo mostrar que sou capaz. Lembro-me de que me diziam “Não faças isso porque é para os mais velhos ou para os homens” e eu esforçava-me por mostrar logo que não ficava atrás. É curioso porque, mesmo com coisas do quotidiano, imaginemos, o computador que se estraga, eu vou pesquisar ao Google sobre a avaria. Somente se não conseguir resolver o problema é que peço auxílio a um técnico de informática. Isto ajuda-me a desenvolver a minha parte intelectual. Quando tento decifrar um enigma, exemplificando, estou a aprender. Acho que nunca é tarde para aprender e fá-lo-ei até ser velha. Faz muito parte da minha personalidade.
Quais são os seus maiores objetivos?
Neste momento, o meu foco está totalmente virado para dar o meu melhor nos Jogos Olímpicos deste verão. Estou a treinar para que a minha prestação seja melhor do que no passado, um sexto lugar. Cada competição é única, só posso controlar o trabalho que faço. Quero passar à qualificação, na final fazer um grande recorde nacional e lutar pelas medalhas.