A Humanidade luta contra a covid-19 há um ano. Em Portugal e no mundo, são feitos balanços, contagens, homenagens. Numa sociedade decente, solidária, é impossível que os nossos primeiros pensamentos não sejam guiados para os que mais têm sofrido com a pandemia: os doentes e familiares dos que não sobreviveram; os médicos, profissionais de saúde e todos os trabalhadores da linha da frente, das forças de segurança aos bombeiros, passando por todos os que não deixaram de manter as vilas e as cidades a funcionar, mais expostos do que quaisquer outros; os que contraíram o vírus, muitos dos quais vão viver demasiado tempo com os efeitos de longo prazo da doença; e, por último, as famílias e comunidades que perderam alguns dos seus mais queridos.
Há quem tenha a ingénua esperança de que, passada a pandemia, tudo voltará a ser como antes. A perda insuportável de vidas humanas, a exaustão do Estado Providência e a crise que se anuncia, os efeitos do distanciamento e realidades como o teletrabalho, sugerem-nos que o relógio não vai andar para trás, que as coisas não mais voltarão a ser como eram em fevereiro de 2020. Não sei se serão melhores ou se serão piores: sei apenas que serão diferentes.
Este é o tempo certo não só para refletirmos sobre o que nos aconteceu no último ano mas, sobretudo, para pôr as mãos à obra na construção do mundo pós-covid. Como escrevia o israelita Yuval Harari, num luminoso ensaio publicado no FT, ao invés de provar a inapelável fragilidade dos homens perante a natureza, a pandemia veio sublinhar a espantosa resiliência humanidade que não mais está indefesa perante fenómenos de uma brutalidade extrema. A vitória que se anuncia sobre a covid-19 chegou mais depressa do que em qualquer outro momento da história no qual homens e vírus se tenham confrontado à escala global. Nota Harari, e eu concordo, que a nossa capacidade de tornar a pandemia um fenómeno “gerível” se deve aos extraordinários progressos da ciência – e da tecnologia. A responsabilidade pelos números negros deve-se, sobretudo, a mau comando político.
Olhando para o nosso país, para as nossas dinâmicas particulares, a pandemia veio destapar a nossa esclerosada arquitetura institucional e legal. O país não tem mecanismos legais, e veremos se tem instituições, aptas para cumprir os seus objetivos em situações de emergência. Outra dimensão onde Portugal mostrou insuficiência crítica foi no tratamento e armazenamento de dados quando mais eles eram necessários para tomar boas decisões políticas. Isto não espanta ninguém que conheça minimamente a organização do Estado, cristalizada em quintais burocráticos e refém de uma mentalidade que prefere o brilho da mediocridade egoísta à performance superlativa da equipa.
Se os dados são o petróleo do século XXI, Portugal ainda vai no tempo do comboio a vapor. É urgente que o Estado repense todas as suas competências na área da recolha, tratamento e armazenamento de dados, em particular, e nas tecnologias de informação, em geral. Fazer parte do pelotão da revolução digital ou ficar invariavelmente para trás depende de uma aposta honesta nestas áreas. Para terminar, a crise evidenciou o papel insubstituível do Estado. Que esta constatação de facto sirva para reforçar o SNS e reformar o Estado, tornando-o forte e ágil, fazendo bem o que lhe compete. Temo que a evidência dessa necessidade granjeada durante a pandemia seja manipulada para, ao invés, sustentar argumentos de esmagamento da iniciativa privada.
A escala dos desafios colocados pela pandemia obriga-nos a visitar o futuro para alcançarmos respostas concretas no presente.
Um presente que está, para já, muito marcado pelo que é ou não é o plano de desconfinamento.
Tal com o resto do país, Cascais não tem qualquer pista sobre o que está a ser preparado pelo Governo. Mas como não somos de esperar de braços cruzados, trabalhamos num plano de desconfinamento local, em complemento ao nacional.
Apoiados pelo melhor conhecimento científico, o nosso plano local correrá em quatro eixos críticos. A saber: (1) alargamento da testagem, para mais rapidamente identificar os casos positivos e a incidência das novas estirpes; (2) reforço das equipas de rastreamento e tentar que os inquéritos sejam mais pormenorizamos, para identificar e quebrar as cadeias de transmissão em horas; (3) aumento da capacidade de isolamento, para contenção imediata do vírus; (4) constituição de grupos técnicos que façam o estudo aprofundado da população infetada para reunir o máximo de informação possível.
Como complemento ao nosso plano local de desconfinamento, e numa estratégia de longo prazo, estamos a calibrar todo o nosso Sistema Local de Saúde para a realidade médica pós pandemia.
Isso está a ser feito com investimentos que ascendem a 20 milhões de euros em novas unidades de saúde. E, tão ou mais importante, com a preparação do sistema para acomodar os milhares de portugueses que vão sofrer os efeitos da pandemia durante meses ou anos. A covid-19 não provoca uma doença de curta duração. Fadiga, perda de memória, tosse permanente, problemas gastrointestinais, dificuldades respiratórias, dores musculares e até paralisias em casos mais graves acompanham muitas pessoas que contraíram o vírus, meses depois da infeção. Estes efeitos duradouros, chamados a “Covid longa”, vão ter um peso extraordinário sobre os serviços de saúde e não só. Com uma economia já devastada, com o tecido social profundamente debilitado, a recuperação física e mental destas centenas de milhares de pessoas é decisiva para placar o impacto da covid longa no emprego e nos sistemas de previdência.
O país está à procura de um plano de saída do confinamento. Isso é necessário mas insuficiente. Do que o país precisa mesmo é de um plano que desconfine, para décadas e não para meses, a nossa economia, o potencial das nossas empresas e o talento dos nossos cidadãos. Esse é o plano mais importante. E aquele de quem nem sinal temos.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira