A influência da cultura na percepção da corrupção (Portugal e outros países)


“Qualquer esforço sério de combate à corrupção não pode deixar de fora a dimensão cultural. É fundamental compreendermo-nos e aos outros o melhor possível, se queremos ter alguma chance de sair da cepa torta no que a corrupção diz respeito”.


Recentemente escrevi um artigo intitulado ‘Os Grunhos’, em que comparava Portugal com os países com melhor pontuação no Índice de Percepção de Corrupção (CPI) da Transparência Internacional com base em diferenças nos traços culturais das populações de cada país, a partir de dados do HofstedeInstitute.

(Sugiro vivamente ao leitor uma leitura desse artigo para ficar com uma melhor noção dos traços culturais em causa, bem como do porquê do título ‘Os Grunhos’).

Ficou-me todavia a pulga atrás da orelha sobre qual a influência dos traços culturais sobre a percepção da corrupção por parte das populações num universo mais vasto de países.

E eis-me agarrado de novo ao Excel a tentar encontrar respostas nos números. Que me perdoem aqueles com menos paciência para a análise de dados e para métodos quantitativos, mas por vezes é bom não falarmos (escrevermos, neste caso) a partir das nossas opiniões (vulgo ‘bitaites’).

Primeiramente fui recolher os dados do Índice de Percepção de Corrupção(CPI) mais recentes (2020) com as pontuações deste indicador para um conjunto de 27 países europeus, a maior parte pertencentes à União Europeia (Áustria, Bélgica, Bulgária, República Checa, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Holanda, Polónia, Portugal, Roménia, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Suécia) bem como a Noruega, Suíça e Reino Unido. Muito importante: um CPI elevado indica uma baixa percepção de corrupção por parte da população de um país.

Seguidamente recolhi os dados das várias (6) dimensões culturais do HofstedeInstitute para todos os mesmos países, e calculei o Coeficiente de Correlação de cada uma destas dimensões com o Índice de Percepção de Corrupção (CPI).

O Coeficiente da Correlação (Pearson, para os entendidos) entre duas séries de valores para um conjunto de objetos (neste caso a correlação dos valores do CPI com os valores de cada uma das dimensões culturais, para todos os países) assume um valor entre -1 e 1, em que quanto mais próximo um valor está de -1 ou 1 maior a correlação (negativa ou positiva), e quanto mais se aproxima e 0 menor a correlação.

Apresentando os resultados (traduzidos em Português) para as várias correlações do Índice de Percepção de Corrupção com cada uma das dimensões culturais do HofstedeInstitute:

  • Masculinidade vs Feminilidade: correlação de 0.33, ou seja, uma baixa correlação entre o CPI e uma sociedade ser mais dada à bravata máscula ou à sensibilidade feminina;
  • Aversão à Incerteza: correlação de -0.61, indicando uma correlação moderada entre valores mais elevados deste traço cultural (maior aversão à incerteza) e valores mais baixos (piores) de CPI;
  • Indulgência vs Constrangimento: correlação de 0.75 (ver Imagem 1 abaixo), indicia uma relação forte entre o valor de Indulgência (as pessoas sentirem-se à vontade para gozarem a sua vida, sem receios de Constrangimentos e normas sociais) e um valor elevado de CPI. Dir-se-ia que quem se preocupa mais com a sua qualidade de vida tem menos propensão para ‘maroscas’;

 

Imagem 1 – Gráfico de correlação entre Índice de Percepção de Corrupção e Indulgência vs Constrangimento

 

  • Orientação ao Longo Prazo: correlação de -0.08, indicando que no universo em análise não há qualquer correlação entre uma orientação a curto ou longo prazo e o valor percepcionado de corrupção;
  • Individualismo vs Coletivismo: correlação de 0.51, denotando uma correlação moderada entre valores de CPI mais altos (melhores) e uma cultura de maior ética de responsabilidade individual perante a sociedade e os outros, versus uma cultura em que as pessoas privilegiam lógicas de funcionamento em grupo, com responsabilidades mais diluídas;
  • Distância ao Poder: correlação de -0.72 (ver Imagem 2 abaixo), indicando uma ligação clara entre valores maiores de distância ao poder por parte das pessoas, com menor acesso ao mesmo e maior passividade para com distribuições desiguais de poder, e valores baixos de CPI (piores). A leitura aqui é relativamente clara: quem cala consente, e quem consente cala.

 

Imagem 2 – Gráfico de correlação entre Índice de Percepção de Corrupção e Distância ao Poder

 

Deste segundo (longo) passo retiro que os traços culturais potencialmente mais explicativos do Índice de Percepção de Fraude são Indulgência vs Constrangimentoe Distância ao Poder.

Ou seja, os países com culturas mais dadas ao usufruto do que a vida tem para oferecer, e cuja população tenha uma menor distância ao poder e menos permissividade para com abusos ou má-distribuição de poder serão aqueles, por hipótese, com menos inclinação para a ocorrência de fenómenos de corrupção.

Por outro lado, os países com culturasem que os cidadãos se sintam constrangidos por normais sociais restritas, tornando mais difícil a gratificação pessoal, e que aceitem passivamente a distribuição desigual de poder, indicia uma maior preponderância de atos de corrupção.

Importa nesta análise a necessária advertência: correlação não é, necessariamente, causalidade. Mas começar por perceber correlações significativas é dos melhores caminhos para melhorar a compreensão do problema e do contexto, explorando hipóteses de causalidades e de soluções.

A mensagem que gostava que ficasse deste artigo é a de que qualquer esforço sério de combate à corrupção não pode deixar de fora a dimensão cultural. É fundamental compreendermo-nos e aos outros o melhor possível, se queremos ter alguma chance de sair da cepa torta no que a corrupção diz respeito. Não acreditar nem em fatalismos do ‘somos mesmos assim’ nem embandeirar em arco com grandiloquências ocas, leis e decretos anunciados com pompa, encomendados ou feitos sem ligação à realidade de quem somos, que depois de publicados geram ‘Relatórios de Progresso no Combate à Corrupção’ absurdos durante ou dois anos antes de deixarem de ser feitos de todo. Isto é só tapar o sol com a peneira, fingir que algo se faz sem que nada realmente seja feito.

Se queremos realmente vir a ser os melhores do mundo, temos de começar por perceber que ainda não o somos, olharmo-nos de frente no espelho, e ousarmos um ‘vamos lá’ sério e consciente.


A influência da cultura na percepção da corrupção (Portugal e outros países)


“Qualquer esforço sério de combate à corrupção não pode deixar de fora a dimensão cultural. É fundamental compreendermo-nos e aos outros o melhor possível, se queremos ter alguma chance de sair da cepa torta no que a corrupção diz respeito".


Recentemente escrevi um artigo intitulado ‘Os Grunhos’, em que comparava Portugal com os países com melhor pontuação no Índice de Percepção de Corrupção (CPI) da Transparência Internacional com base em diferenças nos traços culturais das populações de cada país, a partir de dados do HofstedeInstitute.

(Sugiro vivamente ao leitor uma leitura desse artigo para ficar com uma melhor noção dos traços culturais em causa, bem como do porquê do título ‘Os Grunhos’).

Ficou-me todavia a pulga atrás da orelha sobre qual a influência dos traços culturais sobre a percepção da corrupção por parte das populações num universo mais vasto de países.

E eis-me agarrado de novo ao Excel a tentar encontrar respostas nos números. Que me perdoem aqueles com menos paciência para a análise de dados e para métodos quantitativos, mas por vezes é bom não falarmos (escrevermos, neste caso) a partir das nossas opiniões (vulgo ‘bitaites’).

Primeiramente fui recolher os dados do Índice de Percepção de Corrupção(CPI) mais recentes (2020) com as pontuações deste indicador para um conjunto de 27 países europeus, a maior parte pertencentes à União Europeia (Áustria, Bélgica, Bulgária, República Checa, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Holanda, Polónia, Portugal, Roménia, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Suécia) bem como a Noruega, Suíça e Reino Unido. Muito importante: um CPI elevado indica uma baixa percepção de corrupção por parte da população de um país.

Seguidamente recolhi os dados das várias (6) dimensões culturais do HofstedeInstitute para todos os mesmos países, e calculei o Coeficiente de Correlação de cada uma destas dimensões com o Índice de Percepção de Corrupção (CPI).

O Coeficiente da Correlação (Pearson, para os entendidos) entre duas séries de valores para um conjunto de objetos (neste caso a correlação dos valores do CPI com os valores de cada uma das dimensões culturais, para todos os países) assume um valor entre -1 e 1, em que quanto mais próximo um valor está de -1 ou 1 maior a correlação (negativa ou positiva), e quanto mais se aproxima e 0 menor a correlação.

Apresentando os resultados (traduzidos em Português) para as várias correlações do Índice de Percepção de Corrupção com cada uma das dimensões culturais do HofstedeInstitute:

  • Masculinidade vs Feminilidade: correlação de 0.33, ou seja, uma baixa correlação entre o CPI e uma sociedade ser mais dada à bravata máscula ou à sensibilidade feminina;
  • Aversão à Incerteza: correlação de -0.61, indicando uma correlação moderada entre valores mais elevados deste traço cultural (maior aversão à incerteza) e valores mais baixos (piores) de CPI;
  • Indulgência vs Constrangimento: correlação de 0.75 (ver Imagem 1 abaixo), indicia uma relação forte entre o valor de Indulgência (as pessoas sentirem-se à vontade para gozarem a sua vida, sem receios de Constrangimentos e normas sociais) e um valor elevado de CPI. Dir-se-ia que quem se preocupa mais com a sua qualidade de vida tem menos propensão para ‘maroscas’;

 

Imagem 1 – Gráfico de correlação entre Índice de Percepção de Corrupção e Indulgência vs Constrangimento

 

  • Orientação ao Longo Prazo: correlação de -0.08, indicando que no universo em análise não há qualquer correlação entre uma orientação a curto ou longo prazo e o valor percepcionado de corrupção;
  • Individualismo vs Coletivismo: correlação de 0.51, denotando uma correlação moderada entre valores de CPI mais altos (melhores) e uma cultura de maior ética de responsabilidade individual perante a sociedade e os outros, versus uma cultura em que as pessoas privilegiam lógicas de funcionamento em grupo, com responsabilidades mais diluídas;
  • Distância ao Poder: correlação de -0.72 (ver Imagem 2 abaixo), indicando uma ligação clara entre valores maiores de distância ao poder por parte das pessoas, com menor acesso ao mesmo e maior passividade para com distribuições desiguais de poder, e valores baixos de CPI (piores). A leitura aqui é relativamente clara: quem cala consente, e quem consente cala.

 

Imagem 2 – Gráfico de correlação entre Índice de Percepção de Corrupção e Distância ao Poder

 

Deste segundo (longo) passo retiro que os traços culturais potencialmente mais explicativos do Índice de Percepção de Fraude são Indulgência vs Constrangimentoe Distância ao Poder.

Ou seja, os países com culturas mais dadas ao usufruto do que a vida tem para oferecer, e cuja população tenha uma menor distância ao poder e menos permissividade para com abusos ou má-distribuição de poder serão aqueles, por hipótese, com menos inclinação para a ocorrência de fenómenos de corrupção.

Por outro lado, os países com culturasem que os cidadãos se sintam constrangidos por normais sociais restritas, tornando mais difícil a gratificação pessoal, e que aceitem passivamente a distribuição desigual de poder, indicia uma maior preponderância de atos de corrupção.

Importa nesta análise a necessária advertência: correlação não é, necessariamente, causalidade. Mas começar por perceber correlações significativas é dos melhores caminhos para melhorar a compreensão do problema e do contexto, explorando hipóteses de causalidades e de soluções.

A mensagem que gostava que ficasse deste artigo é a de que qualquer esforço sério de combate à corrupção não pode deixar de fora a dimensão cultural. É fundamental compreendermo-nos e aos outros o melhor possível, se queremos ter alguma chance de sair da cepa torta no que a corrupção diz respeito. Não acreditar nem em fatalismos do ‘somos mesmos assim’ nem embandeirar em arco com grandiloquências ocas, leis e decretos anunciados com pompa, encomendados ou feitos sem ligação à realidade de quem somos, que depois de publicados geram ‘Relatórios de Progresso no Combate à Corrupção’ absurdos durante ou dois anos antes de deixarem de ser feitos de todo. Isto é só tapar o sol com a peneira, fingir que algo se faz sem que nada realmente seja feito.

Se queremos realmente vir a ser os melhores do mundo, temos de começar por perceber que ainda não o somos, olharmo-nos de frente no espelho, e ousarmos um ‘vamos lá’ sério e consciente.