Indiferentemente dos quadros sociais da memória, aquilo a que se dá o nome de memória coletiva integra sempre a fixação, a lembrança, a evocação, o reconhecimento e a conservação. No caso vertente da Praça do Império, obra de arte e expoente máximo do desenho de espaço público exterior modernista em Portugal, a memória é explícita, não havendo português ou estrangeiro que não a reconheça na plenitude do significado que ainda encerra, ou seja, o do contributo decisivo de Portugal no movimento dos Descobrimentos e da construção do mundo tal como hoje o entendemos.
Por mais interpretações subjetivas que se possa permitir, aquele espaço fronteiro aos Jerónimos e integrado no complexo de obras de arte arquitetónicas de que também constam a Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos é, indiscutivelmente, a marca de Lisboa e do seu raro estatuto de capital histórica. Como bem lembrava o saudoso Paulo Varela Gomes, “Lisboa não pertence a Portugal, nem aos portugueses: é o único património genuinamente mundial existente em Portugal”. Nesse conjunto ribeirinho, a Praça do Império é o elemento de ligação entre a memória em pedra dos monumentos e a perceção vívida da mutação do tempo, representada pelo ininterrupto fluir das águas do Tejo e da natureza em perpétua renovação. Assim, a fixação, a lembrança, a evocação e o reconhecimento da Praça do Império estão perfeitamente na memória retentiva de todos os portugueses. Faz parte da sua identidade coletiva, pelo que não há português que a não saiba reconhecer, valorizar e estimar. Ali, só falta a conservação.
Em 2016, a Nova Portugalidade levou à Assembleia Municipal de Lisboa uma petição pedindo que os brasões florais inscrevendo as cruzes de Cristo e de Avis, as Flechas de São Sebastião e os brasões de armas das antigas províncias ultramarinas de Portugal fossem preservados no quadro de um impulso de substituição então nunca racionalmente explicado, o qual julgávamos movido por simples afã de neofilia e em que não quisemos ver qualquer sombra de obsessão ideológica. Contudo, pelo teor de algumas intervenções, percebeu-se que aquela intervenção, para além de lesiva de um soberbo espaço, encerrava propósitos de cancel culture que tantos inimigos da cultura aplaudem. Após muitas horas de audições em sede das comissões mandatadas para proceder a relato a enviar à assembleia municipal e ao presidente da edilidade lisboeta, prova dura com muitas resistências e uma quase obsessão pela “ideologia” por parte de alguns deputados municipais, defendemos com veemência e uma boa dose de pedagogia os interesses superiores da nossa Praça do Império.
Inopinadamente, após cinco anos de manobras dilatórias, com blandícias e falso espírito negocial, em que se deixou o processo dos brasões da Praça do Império arrastar-se ao extremo da degradação, num repente, decidiu-se a edilidade por uma iniciativa unilateral, tosca, improvisada, inculta e prepotente que nos fora prometido não ocorreria. Perante o facto consumado, de novo com coordenação da Nova Portugalidade, um conjunto de personalidades representativo da sociedade portuguesa, sem barreiras políticas e ideológicas, junta-se para exigir a renovação e a preservação da nossa Praça do Império. Neste grupo de proponentes signatários constam deputados e ex-deputados municipais do PSD, do CDS-PP, do MPT e do PPM, deputados do PSD e CDS-PP da Assembleia da República, o vice-presidente de um partido político, ex-diretores de museus, oficiais superiores das Forças Armadas, um antigo presidente da CML, académicos e especialistas em salvaguarda, gestão e revivificação do património cultural, além de artistas, arquitetos e olisipógrafos.
Após o início da angariação pública de assinaturas para a petição Contra o Apagamento dos Brasões da Praça do Império, que em três dias recolheu mais de seis mil assinaturas, dois ex-chefes de Estado fizeram-nos chegar a expressão do seu apoio a esta iniciativa: o general Ramalho Eanes e o professor Cavaco Silva. Para Cavaco Silva, “a Praça do Império é, toda ela, uma homenagem à gesta dos Descobrimentos, feito de que os Portugueses se devem orgulhar. Portugal soube manter uma amizade sólida com os países de expressão portuguesa, baseada no respeito mútuo e numa cooperação continuamente aprofundada. Espero que se tenha o bom senso de recuperar e preservar os brasões florais que evocam a memória da nossa presença Além-Mar e devem ser hoje celebração dessa proximidade entre países irmãos”. Também para o general Ramalho Eanes, aquela Praça representa a memória partilhada de quantos fizeram parte da história portuguesa e que hoje se realiza pela unidade da língua portuguesa, a quarta língua de expressão mundial mais falada.
É evidente que se tudo dependesse de certas minorias ativas, fortemente amplificadas pelo acesso à opinião que se publica, há muito teríamos a Praça do Império alterada no nome e convertida em bricolage, mais o prometido Museu dos Descobrimentos, pensado como comboio-fantasma temático, mais as estátuas dos nossos maiores arrasadas, mais a transformação da ideia portuguesa exposta ao ridículo zombeteiro. Como noutras partes do mundo, primeiro foram as estátuas, os nomes das ruas, das avenidas e das praças, depois a proibição de obras literárias, logo a revisão dos manuais escolares e da história. Amanhã seriam os museus e, quem sabe, categorias sociais criminalizadas por atacado. A história e o património não são como os palimpsestos, sujeitos a apagamento e a camadas de versões afeiçoadas aos interesses de grupos políticos. A história não é um divã para catarses psicanalíticas nem um subgénero da literatura, pelo que o respeito pelo património material não pode estar sujeito a estados de alma, muito menos, como é o caso, à erradicação da memória coletiva do povo português e dos povos que foram, são e estarão sempre unidos pela língua. Estamos certos de que a discussão sobre a erradicação dos brasões seria razão ponderosa para um referendo que auscultasse a inteligência e a sensibilidade dos lisboetas. A democracia faz-se com o povo, e nunca em nome do povo. Não o ouvir é lastimável prova da existência de uma pulsão autoritária incompatível com os valores proclamados.
Presidente da Casa dos 24 da Nova Portugalidade