Didier Eribon. Do operariado que vota na extrema-direita

Didier Eribon. Do operariado que vota na extrema-direita


Como e porque o operariado que votava no Partido Comunista Francês (PCF) se passou para a extrema-direita gaulesa? E será, mesmo, que o operariado votou sempre no PCF? Viagem ao mundo pessoal e político de Didier Eribon e suas explicações, coladas à pele, para este fenómeno


1.Pode ser maior a vergonha social – a vergonha das origens sociais, familiares, que a todo o custo se pretende ocultar – do que a vergonha sexual – a vergonha de uma orientação sexual minoritária, que se pretende esconder. Didier Eribon assume ter tido maior relutância/dificuldade em escrever sobre a primeira do que acerca da segunda. No agora professor universitário, convive a filiação em uma família pobre com a homossexualidade. Regresso a Reims, editado pela D.Quixote (2019), é uma auto-biografia e um manual de Sociologia de Eribon que, tendo sido publicado há cerca de uma década em França, mantém a sua pertinência: a sua aproximação ao movimento, por parte da "classe operária”, da esquerda comunista à extrema direita resiste, perfeitamente, ao tempo e permite uma abordagem que tende a ser mais complexa, densa, completa que o retrato jornalístico mais típico (a este respeito). Eribon observa esta mesma realidade na sua família. Da militância comunista, muito convicta, até ao voto na Front National. Nuance: a passagem não se dá apenas para a extrema-direita; em certas eleições, mãe e irmãos haviam votado (passaram a votar) num candidato da direita (tout-court; não necessariamente um voto no candidato de extrema-direita).

2.Em 1977, o PC francês alcançara 20-21% dos votos. O que contribui para o seu declínio, então? Na análise deste homem formado em Filosofia, tratou-se de i) uma incapacidade (do partido comunista francês) de romper com o PC soviético, que financiava o seu congénere gaulês; ii) uma incompetência de interpretação, leitura, integração dos movimentos sociais surgidos na sequência do maio de 68; iii) a desilusão com a governação, na qual participaram membros comunistas, no início dos anos 80 (em 1981, Miterrand congrega, para si, uma parte dos comunistas, que alcançam apenas 15%); iv) a aceitação, pela esquerda, de uma espécie de contra-revolução ideológica, conservadora, à qual acabou por aderir; v) neste contexto, a perda, a mudança da linguagem (p.120) revelou-se, igualmente, determinante (diz Eribon, em dois exemplos, que deixou de se falar em «exploração» e «resistência» e passou a falar-se de «modernização necessária» e «refundação social». Desapareceram as noções de «classe» e da polaridade entre «dominadores» e «dominados»; vi) o discurso sobre os «operários» varreu-se e, estes mesmos, os operários obliterados do espaço público (mediático), isto é, deixa de haver uma representação (das perspectivas, dos interesses) de tais operários.

A coligação entre determinados grupos sociais – mundo operário, funcionários públicos, professores – quando o «voto operário» era comunista – passa (agora) a ser outra quando a extrema direita recebe os votos operários: operários, precários, comerciantes, reformados abastados do sul da França, militares fascistas, famílias católicas tradicionais comporão uma nova coligação político-social…(p.127)

Muito interessantemente, Didier Eribon coloca, depois, em crise o pressuposto da «naturalidade» da adesão operária ao comunismo, para concluir que nunca o voto operário nos comunistas foi além dos «30%», sempre a direita tendo alcançado muitos dos sufrágios deste grupo (ao contrário do que tantas vezes se supõe, ou dá como adquirido).
Ainda segundo o ensaísta – que trabalhou no mundo do jornalismo, no Liberation e no Nouvel Observateur – o voto nos comunistas, pelos operários, era um voto que, depositado individualmente, era realizado em nome de uma «classe»; o voto na Front National era (é) uma soma dos preconceitos individuais de cada um dos operários. O PC captava tanto quanto moldava uma opinião/modo de estar políticos; a Front National limita(va)-se a incorporar os piores preconceitos dos seus putativos votantes. Neste aspecto, na visão do autor, durante anos, pertencer ao «Partido» significava, por exemplo, que a perspectiva racista, ou anti-imigração de muitos membros do operariado tinha que ser, depois, por estes, (auto-)anuladas – e essa era uma dimensão que tais militantes aceitavam, sabiam, viam, quase, com benignidade (uma espécie de missão civilizante que a integração política, naqueles termos, incluía; mesmo que o livro nos diga também dos flirt's do próprio «Partido» com posicionamentos anti-imigração; esta auto-biografia realça também que o movimento operário, as suas características, nas décadas de 60 e 70 do século XX não eram em nada idênticas às dos anos 20/30).

Na descrição do posicionamento político dos seus familiares, a ideia de que se o voto no PC – enquanto durou – foi convicto, confiante e assumido, o voto na extrema direita não tinha (tem) o grau de adesão, de lealdade e de clareza (assunção do voto; a questão do voto escondido), ou mesmo identificação programática daquele (anterior)…

3.Em O ódio à democracia, Jacques Ranciére havia escrito que a democracia é o regime para o qual não há uma competência particular para nela se exercer um cargo, ser um representante (participar). Título académico, ascendência, (ser-se um) profissional de determinada área; nada habilita – a não ser o facto de ser cidadão – alguém para exercer o poder em democracia. Neste sentido, a democracia – nela exercer-se um determinado cargo – é o regime de todos (ou, se se preferir, de ninguém). Não há grupos "naturalmente" (pré)destinados a liderar num regime democrático, não há peritos ou tecnocratas a quem esteja destinado um cargo.

Este postulado, contudo, em não deixando de conter uma crítica implícita a um círculo restrito dos que se vão mantendo no (ou gravitando em torno do) poder (e seus corredores) ao longo de anos, como que pretendendo alargar o grupo dos que deviam ser tidos em conta para exercer cargos de governo (nos últimos anos, o regresso da ideia de sorteio, em democracia, tem tido particular força em diversos debates), recusando a tecnocracia, chamando a atenção para uma potencial elitização dos grupos de recrutamento e das vozes que fazem falta – outras experiências de vida, outros percursos a não serem levados em atenção, pelo menos em algumas democracias, do que os do universitário, advogado, professor… -, podendo, aliás, retirar-se que assim se chamava a atenção para a reconhecida brecha entre representantes e representados, não convence, de modo substantivo, Didier Eribon: para este, que cita expressamente esta obra de Ranciére, não se trata de emancipação (com esta proposta, a da não necessidade de competência para se exercer a democracia), na medida em que, com esta ideia, não se chega, sequer, a questionar porque os que não têm competência – num regime que a dispensa – não a possuem; por que é que os grupos sem especial qualificação, pensam, votam e decidiriam como o fazem (fariam; no caso de exercerem esse cargo…no seu entender, perigosamente, como depreende do que observa na família; mas ainda aqui um medo do povo, criticar-se-ia e, de qualquer forma, a ausência de competência, levada ao limite, colocaria o problema…da competência para exercer um sufrágio).

4.No final da adolescência, e durante a sua juventude, Eribon quis afastar-se, o máximo possível, do meio de onde veio que representava, então, tudo o que lhe repugnava no plano dos sentimentos, práticas e ideias. Sentia, por exemplo, auto-complacência por não ter nos pais os interlocutores que achava merecer para os seus diálogos culturais. Ao contrário do que propunha Deleuze, para os pais de Didier Eribon ser de esquerda não tinha nada a ver com o suplantar do interesse pela sua rua e envolver-se emocionalmente com os oprimidos do mundo inteiro; eram considerações de ordem pragmática e muito comezinhas que os levavam a optar pela gauche (era esta que defendia os seus interesses nas questões que os importavam no seu quotidiano francês). O racismo estava presente claramente na família (pp.133-134) – mais tarde, Eribon dirá perceber que a matança de cordeiros em sacrifício, os cheiros horríveis a comida num inteiro bairro, as pichagens nas paredes, a destruição de equipamentos sociais por parte de vizinhos magrebinos, justifica uma merecida indignação: mas como se faz disto uma visão global do mundo, assente no racismo?, era uma interrogação que o mortificava -, a homofobia, o anti-intelectualismo (atente-se na cena em que Eribon chega a casa com o Le Monde), os dichotes populares contra "os pretos", ou os "maricas" ou os "boches" (como chamavam, depreciativamente, aos alemães). A recusa de excessiva importância, e muito menos de poder, da juventude (nomeadamente universitária), fosse na família, fosse para ter em conta em termos político-sociais. O pai de Eribon ia para a taberna beber, embriagava-se frequentemente e era violento com certa constância (em família). Provavelmente, terá encetado relações extra-matrimoniais, que lhe pareceriam absolutamente normais…tanto quanto jamais toleraria que, alguma vez, idêntica ocorrência tivesse lugar com sua mulher. A sua virilidade, aliás, seria posta em causa se a esposa conduzisse o carro em vez deste (como chegava ocorrer à falta de carta de condução da sua parte), ou sustentasse (esta) a família em situação de desemprego do marido (ter a mulher, como sucedeu, que ir trabalhar para uma fábrica, com a presença de outros homens nesta, era, já de si, desonroso o bastante; a mãe de Eribon trabalhou como empregada em casa de patrões que praticavam, como era uso à época, assédio sexual; tinha-se casado, de forma pragmática, com o homem que viria a ser pai de Eribon, não por ser o seu desejado, mas porque em falhando este, por complicações familiares, queria emancipar-se e construir família…pode ser este como podia ser outro; a mãe de Eribon sempre se soube inteligente e sofreu, por consequência, por não ter chegado muito mais longe na hierarquia social por falta de oportunidades). 

Se Eribon se filiará, também ele, claramente à esquerda – virá a ser trotskista -, a contradição a que se via obrigado era um peso que carregava sobre os ombros: se o mundo operário, que conhecia bem, tinha aquelas características, e em boa medida lhe causavam repulsa os sentimentos que ali germinavam (bem como os discursos/práticas) era, paradoxalmente, este (mesmo) operariado que, ideologicamente, se esperava que defendesse (e defendia convictamente, ao mesmo tempo).

O retrato cru de Eribon, sobre o modus vivendi da família, e do entorno operário à volta, como que tem algo do Orwell de O caminho para Wigan Pier, quando não idealiza a «classe operária» e a conta com a frieza e (procura de) objectividade tal qual…(ela se perpetua na sua memória). O tradicionalismo, os preconceitos, a recusa do outro (de nacionalidade diversa) com o qual, porventura, se esperaria que estivesse em fraternidade – era, às vezes, a greve que irmanava, de facto, nacionais e estrangeiros, em França, em luta contra o mesmo patrão; mas era, pois, uma irmandade construída politicamente – não são, aqui, obnubilados. 

Nasceu na pobreza, na miséria mesmo, veio de uma família cujos ascendentes, não raro, eram analfabetos (como uma das avós [pp.50-51]; o pai ficou-se pela instrução primária), haviam casado e tido filhos muito cedo e, em sucedâneo, postos fora de casa pelos respectivos progenitores; estes, recusarão, pois, os seus descendentes que viravam-se como podiam (o pai passa a ser operário antes dos 14 anos; e trabalhará, em simultâneo, em duas fábricas), famílias extremamente numerosas (a sua avó foi presa por abortar (p.68); os irmãos de Eribon, com a sorte decidida à nascença – nos termos deste -, concluíram em mecânico ou outra profissão "não intelectual"; ele seria o "miraculado" [era um milagre gostar de livros, pp.108], cujos pais vendiam leite para ele poder estudar Platão, e que, ainda assim, na faculdade foi [teve que ser] vigilante de computadores e trabalhou num hotel para poder sustentar-se (os pais garantiam-lhe, e com que orgulho, dois anos na faculdade, mas não possuíam recursos económicos para mais). Mesmo com pais não crentes, e até anti-clericais, foi, por estes, baptizado e, bem assim, inscrito no catecismo, não faltando às devidas comunhões/profissões de fé.

Houve um tempo em que pretendeu-se afastado de toda a tarefa manual – que julgava menor e inapropriada para quem se queria (um) intelectual (até ao dia que viu um respeitável académico fazer estantes nos tempos livres); assim, e ainda, o gosto pelo futebol haveria de merecer o seu desprezo, forma última de se reconhecer um bom espírito – também isto lhe passou. O cuidado com o sotaque, a (auto) vigilância dos vocábulos e expressões a usar; a mentira, mesma, sobre as suas origens. Assim foi durante anos. E, na revisão de uma vida que o levou às causas sociológicas de tudo – no que lhe valeu uma suspensão dos juízos mais severos que ruminara sobre os familiares diletos -, o reconhecimento, todavia, ainda, de que sem dúvida as redes informais de sociabilidade são determinantes, mesmo com os melhores diplomas, para se chegar a um emprego razoável. Foi num círculo de homossexuais, por aí se espalharem pessoas de várias classes sociais (de aí poder subir ao elevador, portanto, dando o salto social), que acedeu às publicações de prestígio (ou nem tanto, no olhar esquerdista de Eribon sobre o Libe em metamorfose ou Nouvel que nunca o convenceu) e ao mundo cultural a que aspirava; sem se ter encontrado com aquele círculo, com as mesmíssimas qualificações (que alcançara), não iria a nenhum lugar – dado o ponto de partida. O mesmo, conta, que o levava a não ter, inicialmente, no liceu (ele que sempre foi bom aluno), o comportamento, a disciplina, o polimento, a atitude, que o deveria levar mais longe – e como uma amizade, em particular, o levou a esses ganhos, ao conhecimento dos compositores, dos autores, na música e na literatura, que era necessário conhecer para se ser alguém; aprendeu modos, um outro vocabulário, uma maneira de ser diversa; como que passou para outro habitus (e como em Eribon um autor como Bordieu é determinante!), e esta imitação liceal (do seu colega, filho de pais universitários) foi-lhe fundamental. Mas escolheu espanhol – quando os melhores apontavam ao alemão – e foi para letras – quando os empregos com superior remuneração estavam nas ciências, porque nunca teve um background familiar que o ajudasse a ler e interpretar o mundo. De aí, também, ter principiado por desaguar numa universidade próxima de Reims, sensivelmente cavernícola no que ao estudo da Filosofia diz respeito. Só a mudança para a capital – e apesar dos lugares de engate na terra de origem, a mudança para a grande cidade para poder prosseguir, digamos assim, a sua orientação sexual, era um clássico; neste aspecto, e ainda assim, Eribon escreve páginas pungentes de perseguição, homofobia policial, espancamentos e outras "torturas" que viu serem perpetradas sobre homossexuais, lembrando, ainda e antes, o modo como ele mesmo gozara, na precocidade da sua adolescência, colegas e dissera as mesmas palavras de ódio, como que tentando extirpar a dúvida sobre a sua orientação e extirpar, mesmo, essa parte de si – o fez penetrar, profundamente, na filosofia (fosse na sua história, fosse, muito especialmente, no conhecimento do pensamento contemporâneo e seus mais insignes cultores).

Para Eribon, só quem pertence à «classe dominante» não sente pertencer a uma «classe», da mesma maneira que numa sociedade homogénea branca ninguém sente a cor da pele…a não ser que seja negro. Com Sartre, e contra Aron (que qualifica como "superficial"), assim a auto-biografia carregada de sociologia e ideologicamente muito marcada de Didier Eribon.