Sotheby’s leiloou um Botticelli por 80 milhões

Sotheby’s leiloou um Botticelli por 80 milhões


Centro da especulação à volta de obras de arte, Nova Iorque tenta rechaçar os efeitos da pandemia reatando o elo entre a arte e o dinheiro.


Mais uma soma astronómica é pedida, e certamente será dada, por um quadro, desta vez um Botticelli com mais de 500 anos. Retrato de jovem a segurar um medalhão é o nome da pintura do mestre renascentista italiano posta à venda há uma semana, em Nova Iorque, pela leiloeira Sotheby’s. O preço: 80 milhões de dólares. Mas é difícil saber se é muito, ou sequer o que representa esta aquisição, isto quando tantos destes quadros que atingem valores exorbitantes parecem circular como dinheiro mais do que como arte. E a este propósito vale a pena lembrar uma cena da série documental realizada por Martin Scorcese, Pretend It’s a City (Faz de Conta Que Nova Iorque É Uma Cidade), em que a escritora Fran Lebowitz, figura que se confunde com um personagem emblemático de uma certa mitologia burlesca identificada com aquela cidade, é questionada sobre uma série de tópicos. Na cena em questão, Scorcese pergunta-lhe qual, entre as mais ostentosas ficções em que hoje em dia embarcamos, é aquela que mais deixa a desejar. E ela reformula e responde: “Qual é a que mais se põe a jeito para a chicana? Eu diria que são as artes visuais”. É um dos mais cáusticos e penetrantes comentários feitos por Lebowitz na série que foi para o ar há algumas semanas na Netflix. Esta capta esse registo flutuante e um tanto volátil próprio das conversas e oferece-nos uma perspetiva humorada de dois amigos sobre uma paixão que os enraíza, nessa vigilância irónica de dois cidadãos desse mundo orgânico e em permanente convulsão que é Nova Iorque. Ele, com a sua prodigiosa mira, cobrindo os ângulos mais inesperados de ruas palmilhadas por existências espinhosas; ela, uma escritora que se reinventou a partir do seu bloqueio e se tornou uma espécie de oráculo desses que havia nas feiras populares, dando a possibilidade de, por uma moeda, qualquer um ouvir a sua sorte recitada na forma de um vago aforismo. Acontece que Lebowitz emprega todos os tiques da mordacidade, mesmo se muitas vezes oferece não propriamente pérolas, mas alfarrobas. Simplesmente, fá-lo com o desassombro de um experimentado bufão. E, depois de lhe fazer aquela pergunta, ela convida Scorcese a ir buscar imagens do leilão levado a cabo pela Christie’s, em 2015, quando o quadro Les femmes d’Alger (versão “O”) se vendeu por 160 milhões de dólares, um valor que estabeleceu um recorde. Lebowitz recorda a cena e lembra que quando o quadro foi mostrado, o público ficou em absoluto silêncio. Parecia estar diante de um túmulo. Mas o milagre, o momento em que os ânimos na sala se elevaram a um estado de verdadeira fanfarra foi quando o veterano leiloeiro daquela casa, Jussi Pylkannen, bateu com o martelo e anunciou triunfalmente o preço final. “Nós vivemos num mundo em que o que eles aplaudem é o preço, não o Picasso”, diz Lebowitz.

Neste período de confinamento, os museus encerraram, mas a narrativa que estes propagam persiste e é mesmo necessário que o espetáculo não esmoreça. Ora, como já alguém escreveu, “nada exprime melhor a natureza mercantil do nosso mundo do que a arte” e, assim, é urgente depositar esse voto de confiança de que o mundo retomará tão cedo quanto possível a sua fanfarra mercantilista. Se os museus estão impedidos de exibir as suas coleções, isso não significa que estejam forçados a interromper a especulação que as anima. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, o valor simbólico da obra de arte, o “interesse pelo desinteresse”, é a imagem especular do seu valor de uso. E isto leva-nos também a concluir que o objetivo principal dos museus de arte contemporânea é obter a confiança do público na arte e no capital, segundo o princípio de que as duas coisas são inseparáveis.

A pintura de Sandro Botticelli em causa foi estimada em mais de 80 milhões de dólares, cerca de oito vezes o recorde de uma pintura do mestre florentino, estabelecido em 2013 por Madonna e o Menino com o jovem São João Baptista, que foi vendido por 10,4 milhões de dólares. Eis um bom pretexto para fazer frente às restrições de saúde devido à pandemia que têm privado Nova Iorque das vendas públicas por dez meses, com as vendas nas principais casas de leilão a caírem esmagadoramente, mantendo-se apenas um volume significativo da atividade online.