Alexandre Lourenço. “O sistema já estava em rutura antes da segunda vaga”

Alexandre Lourenço. “O sistema já estava em rutura antes da segunda vaga”


Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares critica falta de planeamento e de transparência por parte do ministério. “Passados dez anos, voltar a pedir auxílio ao estrangeiro por falha nossa é humilhante”, diz.


O Governo admitiu esta semana pedir ajuda internacional. Os hospitais estão no limite?

O que dissemos sempre foi que era preciso planeamento, atempado. Perceber que recursos estavam disponíveis para responder à pandemia, no setor público, privado, no setor social, no setor militar. Até poderia haver a decisão política de só utilizar o SNS mas esse planeamento devia acompanhar as decisões. Se temos mil infetados por dia e sabemos que 10% precisam de internamento, e existe uma demora média de internamento de 10 dias, ao fim de dez dias temos mil internados. Se tivermos 10 mil casos dias, estamos a falar de 10 mil internados ao fim de dez dias. A decisão de confinar ou endurecer as medidas de mitigação da pandemia depende só da capacidade do sistema. Os hospitais em setembro entregaram os seus planos de contingência. Qual foi a capacidade indicada pelos hospitais? Esses valores foram tidos em conta para confinar? A determinada altura parece que as pessoas se esqueceram disso e deixaram andar.

Fala do relaxamento das medidas no Natal?

Mesmo antes do Natal, em algumas regiões do país já se tinham ultrapassado os planos de contingência feitos em setembro. Foi o caso de Penafiel. Todo esse planeamento que foi feito em setembro é que devia informar a decisão de confinar ou não. E a partir do momento em que não se endurecem mais as medidas porque se sabe que isso penaliza a sociedade, a economia, o emprego, sabe-se que os hospitais vão ter de dar mais. E portanto em vez de terem 100 camas têm de ter 300. Podemos depois arranjar estruturas de retaguarda e temos mais folga para ter mais infeções por dia. Não vimos nada disto ser planeado de forma estruturada. Não saiu do papel. Perguntou-se há dias à senhora ministra se alguma vez se previu este cenário. A resposta é que não. O cenário de rutura numa situação destas tem de estar sempre em cima da mesa, com o planeamento dos diferentes recursos que podem ser ativados e em que moldes, fosse setor privado, social, militar. Chegamos a um determinado nível de esforço e ativa-se este meio. Era o plano que devia ter sido feito em setembro e já contemplando o cenário de ajuda internacional. Isso tem de acontecer antes do colapso, porque se acontece depois do colapso significa que vamos ter pessoas a morrer de forma evitável. Portanto não sei que limite tínhamos, o ponto em que se dizia que não dava mais.

Estamos nessa situação de colapso?

A rutura do sistema aconteceu antes da segunda vaga. O sistema está em défice desde abril. Quando chegamos a novembro e temos menos 120 mil doentes operados, mais de 10 milhões de consultas presenciais por realizar e não se conseguiu fazer a recuperação, houve um colapso. O sistema entrou em rutura há muito tempo. 

Os hospitais da periferia de Lisboa queixaram-se esta semana de uma distribuição desequilibrada de doentes e taxas de esforço desiguais. Percebe essa crítica?

Todos tinham de ser envolvidos no planeamento e perceber-se a taxa de esforço pedida a cada um. Há meses que falamos da necessidade de melhorar a coordenação, inicialmente a preocupação foi haver uma gestão comum de camas de cuidados de intensivos, também recomendada pela comissão de cuidados intensivos e que nunca foi estruturada. No dia a dia os médicos continuam a trabalhar com grupos no Whatsapp, a dizer “por favor fica com este doente”. O que a carta dos administradores hospitalares mostra acima de tudo é a desarticulação total da rede. Dão nota de que há uma esforço maior nuns hospitais do que noutros, mas eu não sei e não sei se todos sabem se isso era previsível ou não, porque pode haver hospitais mais diferenciados que têm de manter mais serviços críticos, uma neurocirurgia que não pode fechar, etc.

Ou prever-se uma reserva estratégica de camas num hospital em caso de acidente, catástrofe natural?

Precisamente, mas seria algo que todos deveriam saber se tivessem reunido e planeado. Neste momento veem o esforço de uns e outros e sentem que é desigual mas isso pode ser real ou não.

Voltando ao início, o pedido de ajuda internacional era incontornável neste momento?

Há dez anos participei na implementação do programa de ajustamento económico e financeiro. Confesso que foi dos momentos mais difíceis da minha vida profissional e que passei muitos dissabores ao ter de prestar contas a países estrangeiros. Passados dez anos, voltar a ter de pedir auxílio estrangeiro por falha nossa – porque esta situação é uma falha nossa de organização e planeamento – é humilhante. Agora evidentemente que entre colocar em risco a vida de portugueses e passarmos uma humilhação, naturalmente que passamos a humilhação para salvar vidas.

Que tipo de ajuda é necessária?

Penso que essencialmente recursos humanos que possam ser disponibilizados, sobretudo para abrir estruturas de retaguarda. Não é no transporte de doentes (para o estrangeiro) que vamos resolver o problema, é uma questão estrutural. Neste momento as nossas projeções apontam para cerca de mil doentes que podem sair dos hospitais para estruturas de retaguarda. Essas estruturas têm de ser ativadas e precisam de recursos humanos.

Está a falar de casos sociais, os doentes que já podiam ter tido alta?

Já nem estou a incluir casos sociais. São doentes com covid-19 moderados que podem ser tratados em estruturas de baixa intensidade.
 

Mil dos 6 mil doentes internados podiam não estar nos hospitais?

Sim. E portanto precisamos de pessoas para ativar estas estruturas para que os hospitais se consigam concentrar nos doentes mais graves, nomeadamente dos que precisam de oxigenoterapia, e também doentes graves não covid.
Esta semana a rede de oxigénio do Amadora-Sintra entrou em sobrecarga. Pode acontecer o mesmo noutros hospitais?
Uma das preocupações que tivemos desde março quando desenvolvemos uma ferramenta de planeamento dos recursos necessários para responder à epidemia, depois adotada pela OMS, foi ser possível prever cuidados intensivos e necessidades de oxigenoterapia, isto mais a pensar em países em desenvolvimento que dependem mais de botijas e não têm tantas estruturas de oxigénio canalizado. Portanto foi uma variável que seguimos. Nas projeções que fizemos na última semana para esta, perante a evolução, fiz esse alerta: estamos num nível de pressão que aconselha a verificação das redes de abastecimento de oxigénio. Estava longe de imaginar o que aconteceu no Amadora-Sintra, mas neste momento todas as instituições têm de rever as suas infraestruturas. Não é faltar oxigénio, mas perceber a capacidade que existe. E tal como fizemos esse alerta na semana passada, temos de pensar o mesmo para os ventiladores. Podemos chegar a uma situação limite em algumas instituições em termos de ventiladores disponíveis. Até pode haver 200 ventiladores por utilizar, mas têm de estar no sítio certo.

Esse limite pode chegar quando?

Neste momento as nossas projeções apontam que esta semana, em termos de ventilação mecânica, podemos chegar até sexta-feira no melhor cenário a 844 doentes ventilados e no menos otimista a 987. Nos internamentos chegámos ontem ao cenário mais otimista, nos doentes ventilados não. Mas a questão é que temos de estar preparados para o pior cenário e tem de haver uma gestão ágil do parque de ventiladores, porque um doente que precise de ser ventilado não pode ficar à espera um dia.

Além dos recursos humanos, que outros apoios podem ser dados por outros países?

Penso que esse será o essencial. Precisamos de recursos que não conseguimos contratar nos últimos dez meses e já estamos acima dos rácios de segurança há muito tempo, com os profissionais a fazer turnos consecutivos e em grande exaustão e sofrimento ético. Também aí podíamos ter tido estratégias de atração de profissionais portugueses que estão no estrangeiro, mas para isso tínhamos de ter condições atrativas e não contratos de quatro meses, que naturalmente não fariam as pessoas regressar ao seu país.

Ontem soube-se que já estava em Portugal uma equipa de médicos alemães a fazer a avaliação de necessidades. Está a par dessa missão?

Não, mas confesso que me parece um pouco estranho que países estrangeiros venham fazer uma avaliação de necessidades. Devíamos saber do que precisamos e pedir essa ajuda. Voltamos à necessidade de transparência: tínhamos de ter sabido quais eram os limites e qual era o preço que o país estava disposto a pagar para controlar a pandemia e saber o que é preciso agora. Agora não me parece que estejamos numa situação em que não possamos dizer o que precisamos. A ferramenta de planeamento de recursos humanos para a resposta à covid-19 é portuguesa. Foi entregue ao Ministério da Saúde em março. Temos capacidade de planeamento no país. A administração hospitalar portuguesa não precisa de lições sobre a gestão de hospitais nem de espanhóis, nem de franceses nem de alemães. Sabe planear. E é preciso dizer que muitos alertas foram feitos em tempo. O que mostramos é que algumas pessoas não souberam planear e não souberam fazer.

É uma crítica que dirige ao Ministério?
Obviamente.

A ministra da Saúde disse esta semana que é criminoso dizer que não houve planeamento. Não houve suficiente?

A senhora ministra disse que era criminoso perante as pessoas que estiveram a trabalhar todos os dias nesse planeamento. A questão é que todos temos de estar sujeitos ao escrutínio dos pares e perceber que planeamento foi feito e como. Não estou a falar de avaliação política. É uma questão técnica que tem de ser respondida pelo Governo: qual era o ponto de rutura do SNS que estava planeado. Não basta dizer que se está no limite.