Catar – O fim da crise do Golfo?


Com base na acusação de estar a patrocinar grupos terroristas – DAESH, Al Qaeda, Irmandade Muçulmana e Hamas – e de fomentar a desestabilização da região, a Arábia Saudita, o Bahrain, os Emirados Árabes Unidos e o Egipto, aos quais viria a juntar-se o Iémen, tornaram pública a suspensão das relações diplomáticas com o Catar,…


Com base na acusação de estar a patrocinar grupos terroristas – DAESH, Al Qaeda, Irmandade Muçulmana e Hamas – e de fomentar a desestabilização da região, a Arábia Saudita, o Bahrain, os Emirados Árabes Unidos e o Egipto, aos quais viria a juntar-se o Iémen, tornaram pública a suspensão das relações diplomáticas com o Catar, um dos mais ricos países do mundo e influentes do Médio Oriente. Doha, contudo, negaria sempre o seu envolvimento com organizações islamistas, e de estar a ser “vítima de um ataque à sua soberania” e de uma disputa que nada tem “a ver com o combate ao terrorismo”[1]. Esta decisão, anunciada a 5 de Junho de 2017, e a pretexto de garantir a segurança dos países vizinhos, face às “ameaças que o terrorismo e o extremismo representam”, teve efeitos práticos desastrosos para a economia catarense, empurrada literalmente para uma quase absoluta situação de isolamento, apesar dos apoios da Turquia e do Irão, sobretudo no plano alimentar e no fornecimento de água potável[2]. A fim de pôr termo a esta situação de bloqueio, que contou com a mediação do Kuwait, foi apresentada ao governo do Catar uma lista de exigências, dentre as quais se destacava o encerramento do canal estatal Al Jazeera, o fim da presença militar turca no seu território e da cooperação com o Irão, e o termo do seu envolvimento com entidades ideológicas sectárias e terroristas. Apesar de algumas das exigências contidas no documento não serem novas, e da promessa da sua gradual satisfação, certo é que, com o advento da chamada Primavera Árabe, as preocupações acentuaram-se com o apoio do Catar a grupos políticos islâmicos. Este facto deitaria, assim, por terra a expectativa da sua eventual anuência às propostas apresentadas. Após um largo impasse nas conversações com vista à resolução do conflito, o ano que agora terminou acabaria por ser marcado por uma intensa agenda da diplomacia kuwaitiana, à qual se juntou, após um período de aparente indefinição, a intervenção do presidente norte-americano, Donald Trump, em contraciclo com a postura do Departamento de Defesa, que sempre assumiu uma posição de neutralidade face à beligerância existente. Este derradeiro envolvimento do presidente Trump acaba por ser entendido, sob o ponto de vista da geostratégica norte-americana, como um claro sinal tendente à formação de uma frente comum [países do Golfo] contra aquela que é considerada a principal ameaça à paz e à estabilidade da região: o Irão.

No passado dia 5 de Dezembro foi, finalmente, anunciado pelos governos da Arábia Saudita, do Bahrein, dos Emirados Árabes Unidos e do Egipto o levantamento do embargo imposto ao Catar, desde 2017, após a sua concordância na retirada de uma série de processos contra estes Estados, sem que tal implique, de imediato, o restabelecimento da unidade do Conselho de Cooperação do Golfo (GCC, da sigla inglesa)[3]. A despeito dos vários compromissos assumidos pelo Catar, o acordo agora assinado não é, contudo, visto pelos países signatários com o mesmo grau de optimismo. Se, por um lado, os Emirados Árabes Unidos mantêm algumas reservas em relação ao comportamento do Catar, no que ao fim do apoio aos movimentos islamistas diz respeito, já para a liderança saudita este novo compromisso terá a virtude de oferecer condições objectivas para uma relação mais profícua com a nova Administração norte-americana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o bloqueio iniciado em 2017 pelos seus vizinhos do Golfo, toda a economia catarense, em particular o comércio, o turismo e a banca, foi bastante afectada, sobretudo ao longo dos primeiros meses da sua implementação. Esta grave situação, no entanto, acabaria por ter um efeito contrário ao desejado, levando ao estreitamento das relações já existentes entre o Catar e o Irão. Na prática, as sanções impostas ao Catar foram sendo sempre ignoradas pelos dirigentes do emirado. De facto, a única cedência parece ser a que está relacionada com a retirada das demandas legais interpostas à Arabia Saudita e aos seus aliados do Golfo[4]. De acordo com muitos analistas, o principal motivo que esteve na base das sanções impostas ao Catar assentava na sua boa relação com o Irão, considerado o grande rival da Arábia Saudita, na liderança e influência que ambos pretendem protagonizar na região. Com o fim do bloqueio imposto ao Catar pelos seus vizinhos do Golfo, terá sido dado um importante passo para a reconciliação de todos os Estados que integram o Conselho de Cooperação do Golfo, e da desejada concertação de esforços face aos desafios políticos e económicos que se projectam no horizonte, limitando, desde logo, a forte influência iraniana na região. Nesse sentido, a actual Administração norte-americana promoveu, já no final do seu mandato, iniciativas tendentes à criação de condições políticas que atenuem o que é entendido como um preocupante posicionamento iraniano. A alegada ameaça protagonizada por Teerão será, pois, uma das questões prioritárias da agenda do futuro inquilino da Casa  Branca, que passará a contar com o relevante contributo turco para os renovados objectivos da política externa dos Estados Unidos, no Médio Oriente. O fim do bloqueio agora  materializado poderá não ser, todavia, o remédio para todos os males que, desde há muito, afectam seriamente a região. Afinal, a questão nuclear iraniana está, ainda, por resolver. Reina, contudo, o sentimento de que este novo contexto de entendimento em muito poderá contribuir para fazer face às ameaças que o programa nuclear iraniano representa para toda a região, ainda que muitos analistas admitam que as sanções anteriormente impostas ao Catar, das quais resultaria a pronta solidariedade iraniana, tornem o pequeno emirado refém desse mesmo apoio, fazendo recear que, dificilmente, o Catar se venha a colocar do lado saudita na luta que opõe Riade a Teerão.

 

Lisboa, 15 de Janeiro de 2021

 


[1] DEUTSCHE WELLE, 5 de Janeiro de 2021.

[2] Center for Strategic and International Studies. Disponível em: https://www.csis.org/analysis/gcc-rift-over-qatar-comes-end

[3] Gulf Cooperation Council. Disponível em: https://www.gcc-sg.org/en-us/Pages/default.aspx [Consultado em 13 de Janeiro de 2021].

[4] ANADOLU AGENCY, 5 de Janeiro de 2021.

 

João Henriques

Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa

Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico

Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Catar – O fim da crise do Golfo?


Com base na acusação de estar a patrocinar grupos terroristas – DAESH, Al Qaeda, Irmandade Muçulmana e Hamas – e de fomentar a desestabilização da região, a Arábia Saudita, o Bahrain, os Emirados Árabes Unidos e o Egipto, aos quais viria a juntar-se o Iémen, tornaram pública a suspensão das relações diplomáticas com o Catar,…


Com base na acusação de estar a patrocinar grupos terroristas – DAESH, Al Qaeda, Irmandade Muçulmana e Hamas – e de fomentar a desestabilização da região, a Arábia Saudita, o Bahrain, os Emirados Árabes Unidos e o Egipto, aos quais viria a juntar-se o Iémen, tornaram pública a suspensão das relações diplomáticas com o Catar, um dos mais ricos países do mundo e influentes do Médio Oriente. Doha, contudo, negaria sempre o seu envolvimento com organizações islamistas, e de estar a ser “vítima de um ataque à sua soberania” e de uma disputa que nada tem “a ver com o combate ao terrorismo”[1]. Esta decisão, anunciada a 5 de Junho de 2017, e a pretexto de garantir a segurança dos países vizinhos, face às “ameaças que o terrorismo e o extremismo representam”, teve efeitos práticos desastrosos para a economia catarense, empurrada literalmente para uma quase absoluta situação de isolamento, apesar dos apoios da Turquia e do Irão, sobretudo no plano alimentar e no fornecimento de água potável[2]. A fim de pôr termo a esta situação de bloqueio, que contou com a mediação do Kuwait, foi apresentada ao governo do Catar uma lista de exigências, dentre as quais se destacava o encerramento do canal estatal Al Jazeera, o fim da presença militar turca no seu território e da cooperação com o Irão, e o termo do seu envolvimento com entidades ideológicas sectárias e terroristas. Apesar de algumas das exigências contidas no documento não serem novas, e da promessa da sua gradual satisfação, certo é que, com o advento da chamada Primavera Árabe, as preocupações acentuaram-se com o apoio do Catar a grupos políticos islâmicos. Este facto deitaria, assim, por terra a expectativa da sua eventual anuência às propostas apresentadas. Após um largo impasse nas conversações com vista à resolução do conflito, o ano que agora terminou acabaria por ser marcado por uma intensa agenda da diplomacia kuwaitiana, à qual se juntou, após um período de aparente indefinição, a intervenção do presidente norte-americano, Donald Trump, em contraciclo com a postura do Departamento de Defesa, que sempre assumiu uma posição de neutralidade face à beligerância existente. Este derradeiro envolvimento do presidente Trump acaba por ser entendido, sob o ponto de vista da geostratégica norte-americana, como um claro sinal tendente à formação de uma frente comum [países do Golfo] contra aquela que é considerada a principal ameaça à paz e à estabilidade da região: o Irão.

No passado dia 5 de Dezembro foi, finalmente, anunciado pelos governos da Arábia Saudita, do Bahrein, dos Emirados Árabes Unidos e do Egipto o levantamento do embargo imposto ao Catar, desde 2017, após a sua concordância na retirada de uma série de processos contra estes Estados, sem que tal implique, de imediato, o restabelecimento da unidade do Conselho de Cooperação do Golfo (GCC, da sigla inglesa)[3]. A despeito dos vários compromissos assumidos pelo Catar, o acordo agora assinado não é, contudo, visto pelos países signatários com o mesmo grau de optimismo. Se, por um lado, os Emirados Árabes Unidos mantêm algumas reservas em relação ao comportamento do Catar, no que ao fim do apoio aos movimentos islamistas diz respeito, já para a liderança saudita este novo compromisso terá a virtude de oferecer condições objectivas para uma relação mais profícua com a nova Administração norte-americana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o bloqueio iniciado em 2017 pelos seus vizinhos do Golfo, toda a economia catarense, em particular o comércio, o turismo e a banca, foi bastante afectada, sobretudo ao longo dos primeiros meses da sua implementação. Esta grave situação, no entanto, acabaria por ter um efeito contrário ao desejado, levando ao estreitamento das relações já existentes entre o Catar e o Irão. Na prática, as sanções impostas ao Catar foram sendo sempre ignoradas pelos dirigentes do emirado. De facto, a única cedência parece ser a que está relacionada com a retirada das demandas legais interpostas à Arabia Saudita e aos seus aliados do Golfo[4]. De acordo com muitos analistas, o principal motivo que esteve na base das sanções impostas ao Catar assentava na sua boa relação com o Irão, considerado o grande rival da Arábia Saudita, na liderança e influência que ambos pretendem protagonizar na região. Com o fim do bloqueio imposto ao Catar pelos seus vizinhos do Golfo, terá sido dado um importante passo para a reconciliação de todos os Estados que integram o Conselho de Cooperação do Golfo, e da desejada concertação de esforços face aos desafios políticos e económicos que se projectam no horizonte, limitando, desde logo, a forte influência iraniana na região. Nesse sentido, a actual Administração norte-americana promoveu, já no final do seu mandato, iniciativas tendentes à criação de condições políticas que atenuem o que é entendido como um preocupante posicionamento iraniano. A alegada ameaça protagonizada por Teerão será, pois, uma das questões prioritárias da agenda do futuro inquilino da Casa  Branca, que passará a contar com o relevante contributo turco para os renovados objectivos da política externa dos Estados Unidos, no Médio Oriente. O fim do bloqueio agora  materializado poderá não ser, todavia, o remédio para todos os males que, desde há muito, afectam seriamente a região. Afinal, a questão nuclear iraniana está, ainda, por resolver. Reina, contudo, o sentimento de que este novo contexto de entendimento em muito poderá contribuir para fazer face às ameaças que o programa nuclear iraniano representa para toda a região, ainda que muitos analistas admitam que as sanções anteriormente impostas ao Catar, das quais resultaria a pronta solidariedade iraniana, tornem o pequeno emirado refém desse mesmo apoio, fazendo recear que, dificilmente, o Catar se venha a colocar do lado saudita na luta que opõe Riade a Teerão.

 

Lisboa, 15 de Janeiro de 2021

 


[1] DEUTSCHE WELLE, 5 de Janeiro de 2021.

[2] Center for Strategic and International Studies. Disponível em: https://www.csis.org/analysis/gcc-rift-over-qatar-comes-end

[3] Gulf Cooperation Council. Disponível em: https://www.gcc-sg.org/en-us/Pages/default.aspx [Consultado em 13 de Janeiro de 2021].

[4] ANADOLU AGENCY, 5 de Janeiro de 2021.

 

João Henriques

Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa

Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico

Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris