Não podemos ficar a meio da ponte


Há que combater a pandemia, manter a democracia e seguir em frente mantendo a calma.


1. Os factos das últimas horas, com o Presidente eventualmente infetado ou não, a pandemia em crescimento, a economia de rastos, colocam em evidência uma gigantesca falha da nossa sociedade como um todo. Falhámos em praticamente tudo aquilo que era essencial: na antevisão do agravamento óbvio da pandemia em proporções dramáticas, na assistência social e na defesa do sistema político democrático, ao não prevermos o que entrava pelos olhos dentro, ou seja, que as presidenciais poderiam eventualmente ter de ser adiadas. Agora, temos que fazer como incitava o célebre cartaz inglês preparado para uma eventual invasão alemã: Keep Calm and Carry On: manter a calma e seguir em frente.

Como é evidente, não há possibilidade de reportar as eleições presidenciais para data ulterior. Ouvidos especialistas, conclui-se que em nenhuma circunstância se conseguiria mudar a constituição a tempo. Ora, manter um Presidente da República em funções sem a legitimidade do voto seria retirar-lhe autoridade e permitir uma desconsideração das normas democráticas. A fonte da autoridade, dos atos, das decisões e da palavra do Presidente está no voto popular, que legitima um cargo unipessoal. As coisas são como são. E o que está a acontecer, com a perspetiva de um novo confinamento rigoroso potenciado por uma abstenção dramática, era tão previsível que até Tino de Rans tinha adiantado em outubro a hipótese de reportar as presidenciais. Agora, mesmo em estado de emergência e de grande limitação de circulação, há que mantê-las e criar as condições para que cada um possa, se quiser, votar com um mínimo de riscos ou optar que outros escolham por si. A democracia não deixa de pressupor empenho pessoal. Importa, por isso, criar as condições para adulterar o menos possível o perfil do universo eleitoral. E isso compete ao Estado e aos atores políticos no seu todo, começando no Governo, apesar da sua reconhecida incompetência no domínio da administração interna e das muitas falhas na saúde por sectarismo ideológico. A circunstância do Presidente poder estar infetado não altera praticamente nada na campanha dele, uma vez que Marcelo não a estava a fazer. Nem sequer aproveitava os tempos de antena. É verdade que a situação em que estamos potencia a perspetiva dos candidatos mais radicais (Ana Gomes, André Ventura, Marisa Matias e João Ferreira) verem os seus eleitores mobilizarem-se e alterarem o que seria a votação natural se, de facto, eles não ficarem também retidos por terem estado junto de Marcelo ou por virem a ser infetados. Mas há que reconhecer que a campanha seria sempre uma inexistência, uma vez que vamos todos estar confinados e com mais que fazer do que andar a ouvir comícios. Com a população mais recolhida e os candidatos limitados de uma ou de outra forma, também compete aos media desenvolverem a sua obrigação de informar nas novas circunstâncias. Há que manter a calma e seguir em frente porque ficar a meio da ponte nunca é boa solução. A democracia sempre teve um preço e exige participação, o que é compatível com a proteção possível contra a pandemia. Neste momento, a prioridade está simultaneamente em tratar doentes e garantir a liberdade política com a participação de todos os que quiserem. Não conseguir compatibilizar as duas coisas, é agravar a catástrofe que estamos a viver.

 

2. Liberto dos debates quinzenais, o Governo anda à solta. A culpa não é de António Costa. Está mais do lado do PSD de Rui Rio que promoveu e concretizou a ideia de acabar com os debates quinzenais, substituindo-os por umas coisas sem nexo. O PS, claro, votou a favor da proposta com entusiasmo e alegria. Não indo aos tempos do Governo Passos, é de recordar que, na legislatura anterior, houve debates marcantes sobre matérias essenciais. Fernando Negrão, sistematicamente, mas também Catarina Martins, João Oliveira, Cecília Meireles e André Silva confrontaram múltiplas vezes António Costa com trapalhadas e falhas do Governo, apesar de haver uma geringonça formal naquela altura. Hoje, Costa só vai ao Parlamento de vez em quando. Perdeu a democracia, perdeu a transparência, perdeu a política e perderam os portugueses que deixaram de ouvir as vozes que quinzenalmente surgiam no Parlamento, denunciando o Governo, embora beneficiasse sempre de uma vantagem regimental. Mas antes isso, do que o vazio que temos agora. Por outro lado, a comunicação social transmitia os debates em direto. O escrutínio era, por isso, também suscetível de ser feito por cada cidadão, sem qualquer filtro. Acabar com os debates quinzenais foi um erro e um contributo decisivo para a asfixia democrática que se verifica em Portugal, onde todos os lugares estão a ser ocupados pela área política que vai do PS até à extrema-esquerda. Atinge até o campo judicial com a indicação de José Guerra para a procuradoria europeia, num processo obscuro e sinuoso. Ver-se-á certamente também, daqui por uns tempos, numa grande empresa do Estado, essencial à democracia. É um processo em curso do qual muito se falará. Há erros na política que se pagam caro e mais tarde. Hoje, não há instrumentos para confrontar o primeiro-ministro de forma regular. Para o fazer de forma eficaz tem de se usar mecanismos tão pesados como uma moção de censura, o que é incompreensível num estado de emergência e de pandemia, embora fosse justificada pelos erros e omissões do Executivo. O fim dos debates trouxe uma fatura pesada para quem o propôs e para todas as oposições. António Costa e o PS ganharam com a oferta. E já se sabe que a cavalo dado não se olha o dente.

 

3. Dos debates presidenciais havidos só ficará para a estória, o que opôs Marcelo a Ana Gomes. Ali se viu a baixeza que ela teve ao tentar, cinicamente, associar Marcelo a Ricardo Salgado. Foi o grau zero. Não admira vindo de quem andou a vida toda à babugem da política. Marcelo pô-la na ordem, mas não lhe ficava mal reconhecer a amizade com o banqueiro e esclarecer se ela se mantém, o que, apesar de tudo, não lhe ficava mal.

 

Escreve à quarta-feira