Na vida real, como na dimensão digital, abundam diversas manifestações da personagem Ebenezer Scrooge, do livro “Um conto de Natal”, de Charles Dickens, com enorme potencial para, pelas suas ações e pelas omissões, serem visitados pelos fantasmas dos natais passados, do natal presente e dos natais futuros.
A inusitada leviandade com que verberam ou agem no presente, amiúde sem noção do passado, com tentações de rescrita dos acontecimentos ou com uma indiferença para as consequências deveriam, no mínimo, ser fustigadas com as aparições dos fantasmas dos natais futuros.
Na vida e nas redes sociais há uma crescente tribalização, sem qualquer tipo de travão de linguagem, de mobilização de todos os meios para determinados fins, mas com enorme significado do estado cívico do país e da sociedade que estamos a construir. A caminho de cinco décadas de Democracia, Portugal está a transformar-se num território de intolerância e da mais elementar falta de respeito pela personalidade do outro.
Num país em que somos formatados para debitar, em vez de pensar, a acefalia do teclado ou da reprodução de conteúdos recebidos está num contágio desbragado para minar os padrões mínimos das interações sociais de exercício das liberdades de expressão. Estamos a caminho de quadro de impossibilidade de geração de diálogos e de construções de pontes cívicas, políticas ou outras quando a realidade é cada vez mais complexa e as soluções de governança são mais difusas.
A complexidade deveria ser compensada com a explicação, interação e transparência nas opções, mesmo que fosse para sublinhar que os caminhos são os escolhidos em função de dados objetivos, de expetativas ou de uma qualquer coerência que presidia à verve e à ação. Mas, não, o exercício é pasto para a incoerência, o tribalismo e os “ismos” em crescimento.
Qualquer fantasma de um natal futuro revelaria a satisfação dos populistas, dos adversários do pluralismo e da diversidade, dos nacionalistas e dos antidemocratas pelo rumo dos acontecimentos. Sem visão do que se quer para o país, combate às sementes antidemocráticas que medram e vontade para responder a desafios estruturais com os quais os instalados convivem bem, da incompetência de alguns quadros políticos aos grandes desafios que afetam as pessoas e os territórios, são cada vez mais evidentes as contradições com as matrizes originárias dos partidos políticos e da democracia portuguesa pós-ditadura de Salazar.
Por muito que a tribo de turno, com longo lastro na fase juvenil e na fase adulta, procure mitigar o exercício estalinista do novo líder dos jovens do Partido Socialista, ele é em si a expressão de toda uma escola de participação política, embeiçada pelo poder e sem olhar a meios para os fins. Uns configurados na facilidade, nas benesses do poder, na verborreia ideológica que contradizem nas pequenas mordomias alheadas da vida concreta da maioria dos portugueses. A adulação dos chefes e a proteção da resposta da tribo perante qualquer diferença de opinião são marcas de uma forma de estar, que nunca teve de trabalhar para gerar condições para o exercício político. É só estar com as pessoas certas e dizer determinadas coisas para aceder ao círculo da tribo. O acesso mais do que o exercício é o fundamental, depois qual ética, coerência ou memória, vai tudo a eito.
Há um conforto instalado no exercício do poder político que conta com a ausência de aparições dos fantasmas dos natais passados e mesmo com a dificuldade pandémica de mobilidade dos fantasmas dos natais presentes. É preciso que não apareçam, a exigir coerência, a exercitar a memória ou a questionar as opções presentes para que o hiato de tempo até ao futuro permita continuar o alegre, incoerente e inconsistente exercício das órbitas de poder pela tribo. É preciso continuar a ganhar tempo para tomar todas as posições de relevo, gerar as demarcações necessárias e consolidar perceções políticas e comunitárias. É preciso continuar as baralhar para que não seja possível tocar nos poderes essenciais da subsistência das estratégias tribais, ainda que se atropelem fundamentos democráticos, se respondam aos de sempre e o futuro seja cada vez mais difuso, logo, em linha com a visão romana dos “nem se governam, nem se deixam governar”.
Só pode ser por desconforto com os riscos dos natais futuros e aprisionamento dos natais presentes que a tribo tenha respondido às aparições de Pedro Passos Coelho e de Aníbal Cavaco Silva, quais fantasmas dos natais passados, com um registo insultuoso nas redes sociais que é indigna da Democracia portuguesa. Divergir da opinião do outro nunca pode ser insultar, mas o tribalismo tem destas acefalias, sem cogitar que, na escalada da dialética e das dinâmicas sociais, hoje é com os outros, algum dia será contra nós.
O quotidiano dá-nos muitas razões para desejar que, para além da saúde, seria bom que a prenda de muitos no sapatinho fosse uma fundada aparição dos fantasmas dos natais futuros em torno do respeito pela diferença, dos pilares democráticos em sociedade, da responsabilidade cívica individual, da separação entre a política e os negócios, da ética e do sentido de serviço público, da justiça social e de tantos outros temas a precisarem de mudanças imediatas. Até lá, um Feliz Natal, dentro das circunstâncias.
NOTAS FINAIS
DA MILITARIZAÇÃO CÍVICA // Não tenho nada contra os militares. Sou grato pelo resgate democrático de 1974 e tenho orgulho na sua prestação nas missões internacionais de paz e contenção em nome de Portugal, mas não tem nenhum sentido de coerência esta tentação recorrente de António Costa tentar militarizar instituições civis como já aconteceu com a proteção civil e está a agora na eminência de acontecer com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
O EFÉMERO INCÓMODO. É tudo demasiado volátil para que desperdicemos o presente. Na quarta, almocei no Restaurante Mastro, na Rua de Santa Marta, em Lisboa. Ontem acordei e era um escombro. Tinha ido lá para os apoiar neste tempo difícil para a restauração. O futuro deixou de existir.
Escreve à segunda-feira