Da idade de ouro

Da idade de ouro


Era pois um homem entrado na velhice quando o êxito lhe bateu à porta, de forma retumbante e com alcance mundial


Este leitor lembra-se dum certo Tio Carlos que aparecia nas páginas do Diário de Lisboa, há mais de meio século. Perdeu-lhe o rasto, desconhece o nome original, a autoria, mas esse imaginário duma curta história sem palavras, quando leitor ainda estava para ser, não mais o abandonou. As tiras: quatro vinhetas e um sorriso esboçado no fim…

Henry, o miúdo careca, desengonçado e que não fala – como não falavam os pantomimeiros do cinema mudo, nem o Reizinho, de Otto Soglow, influências directas – é uma dessas personagens icónicas da idade de ouro dos funnies, cujo surgimento foi um pouco inusitado. Carl T. Anderson (1865-1948), filho de imigrantes noruegueses radicados no Wisconsin, era um jovem marceneiro, inventivo e com sentido artístico, que após frequentar um curso nocturno em Filadélfia ruma a Nova Iorque na transição do século para trabalhar nos jornais, repartindo-se entre o cartoon e os comics: The Filipino and the Chick é uma abordagem mordaz à questão filipina, no âmbito da Guerra Hispano-Americana, e Raffles and Bunny, é inspirado nas narrativas do ladrão-cavalheiro, criadas por E. W. Hornung. Sem grande sucesso, porém, era o cartoon que então lhe assegurava o sustento. Após o crash bolsista de 1929, Anderson, dobrados os sessenta anos, regressa à cidade natal e ao ofício da marcenaria, leccionando desenho em aulas nocturnas. Numa delas, o autor falhado esboçou esta cabeça de ovo, nariz empinado e boca praticamente invisível. Os alunos adoraram o boneco e Anderson deu-lhe o nome de um deles: Henry.

Animado pela reacção dos estudantes, envia alguns trabalhos ao Saturday Evening Post, jornal que acolheu grandes artistas gráficos, como Norman Rockwell. Era pois um homem entrado na velhice quando o êxito lhe bateu à porta, de forma retumbante e com alcance mundial. Impressionado com o ataque desferido pela máquina de propaganda nazi contra o boneco, “Henry o velhaco”, assim lhe chamaram os sequazes do Goebbels, William Randolph Hearst, magnata da imprensa, contrata-o para o King Features Syndicate. As tiras diárias e a página de domingo, o trabalho e a saúde precária obrigaram-no a empregar assistentes: Don Trachte (1915-2005), trabalhará 61 anos em Henry, assinando a prancha dominical… Nas tiras, John Liney (1912-1982). Outros se seguiram, até ao final da série em 1995, mas jornais em todo o mundo continuam a publicá-las.

O livrinho de hoje é todo de John Liney, excepto a tira da contracapa, de Anderson. Henry – que mantém o nome em Portugal, enquanto que no Brasil será Pinduca, e depois Carequinha – , tirando o não falar e a calvície seria uma criança como as outras (um anjo, se comparado com os Katzenjamer…). Guloso, por vezes teimoso, esperto e ingénuo, conforme as ocasiões, às voltas com Henriqueta, menos infantil, mais sabichona. Humor estribado em qualidades de observação notórias dos autores, de atenção ao quotidiano – o lugar de Henry, que é também o nosso.

Henry. 

Autores John Liney e Carl T. Anderson

Editora Portugal Press, Lisboa, 1971

BDTECA

Não-violência. Publicado já entre nós o primeiro tomo de O Castelo dos Animais, de Xavier Dorison, com desenhos de Félix Deleppe, eis que a editora Casterman lança o segundo de quatro álbuns deste follow-up de Animal Farm, a extraordinária fábula política antitotalitária de George Orwell, publicada em 1945. Em Les Margueritesd’Hiver. Madame B., a gata, organiza a resistência contra o touro Sílvio e os seus pides, os cães, ou a inteligência contra a força bruta.

65 álbuns depois. Os Túnicas Azuis surgem com uma história que não é do seu criador, Raoul Cauvin, a preparar o 66.º, mas do casal BeKa e de Munuera, que também assina os desenhos, em vez de Willy Lambil. Desta vez, o cabo Blutch e o sargento Chesterfiled têm de escoltar William Russell, um jornalista inglês do Times, a fazer a reportagem da Guerra Civil americana. E ao contrário do que esperavam os oficiais do Norte, que o enquadravam, Russell é isento… Edição Dupuis, Marcinelle, 2020.

Era uma vez um desejo. A combinação da manipulação genética e o mistério, corporizado num “objecto muito antigo”, uma missão arriscada para um “transportador”. BD portuguesa de ficção científica e pós-apocalíptica ,por Véte: Haverá um Amanhã!?, edição Escorpião Azul, 2020.