Tiago Correia. “Ninguém tem uma bola de cristal nem sabe o que vai acontecer”

Tiago Correia. “Ninguém tem uma bola de cristal nem sabe o que vai acontecer”


Para o sociólogo, a gestão da pandemia “é uma questão mais global, de saúde pública e de unidade nacional” e não apenas política.


Defende que, quando abordamos a pandemia de coronavírus, “estamos no plano das previsões” e, deste modo, tem de haver cuidado em relação à forma como os agentes políticos comunicam com a população. Tem sido comentador assíduo em diversos órgãos de informação e luta pela concretização de medidas concretas naquilo que concerne a gestão da covid-19, em Portugal, como a avaliação da situação epidemiológica local. A paixão pela Saúde Pública desenvolveu-se na licenciatura em Sociologia, que completou no ISCTE no ano de 2007. Seguiu o percurso na mesma área até ter terminado o doutoramento há nove anos. Estuda os sistemas, as organizações e profissões de saúde assim como a epistemologia médica e a teoria social aplicada à saúde. Desenvolve também atividade enquanto investigador associado do CIES-Instituto Universitário de Lisboa e é igualmente membro do Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde para as Políticas e Planeamento da Força de Trabalho em Saúde, da comissão executiva da Sociedade Europeia para a Saúde e Sociologia Médica. No tempo que lhe resta, dedica-se às atividades editoriais em revistas académicas como a Health Sociology Review e à docência. Atualmente, é Professor Associado na Unidade de Saúde Pública Internacional e Bioestatística e investigador sénior do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, local onde decorreu esta conversa.

Nesta segunda-feira, entram em vigor novas medidas restritivas.

Este é um sinal claro de que o Governo não conseguiu jogar com a previsão e com a antecipação, porque estas medidas são claramente reativas. Não acho que seja um estado de emergência preventivo, é reativo, e surge uma semana após o estado de calamidade ter sido decretado com um conjunto de medidas diferenciadas no território. Há que cumprir o princípio da proporcionalidade, olhar para o território de forma diferente e para as cadeias de transmissão. E há outro critério da coerência e da adequação das medidas, pois só conseguimos avaliar a qualidade das mesmas se soubermos aquilo que tentam combater. Foi dito que 68% dos contágios acontece em contexto familiar. Das duas, uma: efetivamente, nos vários concelhos, continua a haver a lógica predominante do contágio familiar ou então as medidas não são adequadas. Assumimos que os contágios acontecem de determinada forma. Não sabemos se é assim.

Os órgãos de informação e algumas câmaras municipais têm publicado mapas de risco, mas já mencionou que esta tarefa deve ser desempenhada pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge [INSA].

Está a ser feito pelo INSA, não pode ser feito pelos concelhos. O mapa de risco deve ser definido pelo mesmo critério e nacionalmente. Apercebi-me de que os concelhos começaram a utilizar as informações disponíveis, públicas, que não são as do INSA – que as tem muito mais detalhadas – e faziam cores, semáforos e riscos. Isto não pode ficar à consideração de cada concelho. O país sentiu esta necessidade de perceber aquilo que se passava, o Ministério da Saúde assumiu claramente que não queria ir por aí – embora tenha acontecido -, mas foi um próprio movimento da sociedade – quer de poder político local quer dos cidadãos. Em relação à definição dos mapas de risco: estou satisfeito que existam, mas faltou a questão das características da transmissão. Uma coisa é ter muitos casos e essa transmissão estar bem identificada – num lar, numa escola, em agregados familiares – e representa um risco menor do que não ter muitos casos mas ter perdido completamente a capacidade de os rastrear. Se a perdi, existe um elevadíssimo risco de transmissão. Não fomos tao longe quanto deveríamos ter ido para afinar ainda mais as políticas que ainda não são as essenciais para atacar as cadeias de transmissão nos vários concelhos. Para mim, a única possibilidade de a situação não piorar não decorre das medidas do Governo – estão implementadas –, mas sim da adesão das pessoas.

A resposta está mais do nosso lado do que nas mãos do Governo?

Sim, nos nossos comportamentos diários, e não propriamente na capacidade que o Governo tem de tomar alguma decisão que vá institucionalmente reverter a tendência que se verifica. Não responsabilizo as pessoas, mas, interpretando o seu comportamento, não tenho a certeza de que, nesta fase, vão aderir à ideia de reduzir os contactos domésticos. Por aquilo que sabemos, é o contexto mais propício à transmissão, um espaço doméstico e fechado, e é muito difícil controlá-lo porque não pode haver um polícia à porta de cada prédio. Estamos no campo da consciência de cada um, mas as pessoas estão cansadas e a questão do combate à pandemia partidarizou-se muito.

De que forma?

Temos sempre apoiantes e opositores ao Governo, mas esta é uma questão mais global, de saúde pública e de unidade nacional. No início da pandemia, houve uma procura dos atores políticos para que se agregassem e tomassem decisões partilhadas, discutidas e refletidas. Quando desconfinámos, o Governo reduziu a base de apoio mais alargada e isso conduziu a uma maior fragmentação no Parlamento. É uma matéria política, e pode existir divergência, mas tomar decisões importantes sem negociações prévias só poderia ter conduzido a esta partidarização, que é muito negativa. Devia haver um consenso político muito mais alargado e as pessoas não entendem as permissões que parecem contraditórias.

A aplicação Stay-Away Covid foi partidarizada?

A aplicação nunca devia ter sido colocada como uma manobra do Governo: devia ter reunido consenso e ter sido discutida entre os vários partidos para que se refletisse na adesão popular. Nenhuma medida deve ser colocada como uma medida do Governo: é política para o bem-estar de todos. Em última análise, não é o sucesso nem o fracasso do Governo, mas sim o sucesso ou o fracasso do país. Há matérias sobre as quais nunca haverá consenso, é claro, mas transparência e alguma negociação reduziriam este ruído que houve acerca das medidas implementadas. E, mais do que ruído, temos uma reação: os partidos não estão alinhados com o Governo, porque tivemos meses de falta de diálogo. Esse foi um sinal muito claro a partir de julho, quando esta questão se tornou mais visível. Os efeitos da culpabilização estão cá, não desaparecem. Há erros que foram cometidos e não são facilmente superáveis.

Quais são as consequências?
Entramos num estado de vigilância e de policiamento popular que é muito perigoso e que acontece noutros países. Por exemplo, em Angola, um médico foi assassinado depois de ter estado a trabalhar durante horas. Houve uma mensagem política muito pouco racional, foi dito que dentro dos carros tinha que se usar máscara. E este médico trabalhou inúmeras horas, chegou ao carro, tirou a máscara e um grupo de populares viu um homem sem máscara, espancou-o e matou-o. Em Espanha, num grupo de jovens, também houve um espancamento. Punição não é o mesmo que consciencialização: as pessoas têm de ser consciencializadas, mas tem de haver uma mensagem muito clara, pedagógica e sobretudo muito transparente. As pessoas devem sentir que são iguais entre si e, quando há exceções, devem ser explicadas.

O que ficou por fazer?

Gostava de ter visto a confirmação, saber se a lógica de contágios é igual. Se assim for, as medidas podem entrar em vigor nos 121 concelhos do mapa de risco. Caso contrário, há medidas que não fazem sentido.

A que medidas se refere?
12% dos contágios acontecem em contexto de trabalho. Pergunto: por que é que o teletrabalho foi declarado obrigatório? É um exemplo da falta de adequação das medidas. Cumprem o princípio da proporcionalidade, que não cumpriam até há uma semana, mas para serem coerentes precisávamos de saber o contexto de contágio por concelho e fazer depender as medidas de cada local em que ocorre. Assumindo que, no país inteiro, os contextos familiares correspondem à medida mais difícil de todas, a questão do recolher obrigatório efetivamente é adequada para que se evitem os contactos entre familiares, sobretudo ao fim de semana. É duríssimo, mas o período de funcionamento vai ao encontro daquilo que se tenta resolver: os familiares que não fazem parte do agregado não se podem encontrar em casa uns dos outros.

Assim, o estado de emergência dá cobertura jurídica às medidas?
A questão prende-se com as medidas – que não sei se serão suficientes. Concordo com as mesmas, mas não subscrevo a leitura de que foram tomadas no tempo certo nem de que podemos ignorar o facto de estarem sucessivamente atrasadas. Há tempos em que as políticas devem ser cumpridas sob pena de poderem ser tardiamente implementadas e não produzirem os efeitos desejados. 

Mas esta realidade também é a dos outros países.
Todos estão a ter dificuldades em lidar com esta situação, mas é claro que em Portugal o panorama agravou-se muito rapidamente. Os contágios estavam desfasados do resto da Europa, talvez num mês. No resto da Europa, aumentaram em agosto e, no nosso país, em setembro. E, de repente, tomamos as medidas que os outros países tomam. Houve uma tendência de descontrolo dos números com reflexo nos serviços de saúde e na mortalidade, isso é inequívoco. Esses erros não precisavam de ter sido cometidos. Só vamos ver o resultado destas medidas daqui a uma semana e meia, quinze dias, porque os números da semana que vai começar dizem respeito a contágios das semanas anteriores. Se as pessoas alterarem os seus comportamentos a partir de ontem, tal terá reflexo daqui a uma semana e meia. 

O que não podem as pessoas esquecer nesta fase?
Têm que distinguir o agregado familiar da família. Devem manter apenas contactos de risco no seu agregado familiar. Quem não faz parte do agregado familiar – mesmo que seja familiar ou melhor amigo – não deve estar dentro da nossa bolha. Idealmente, esse número tem de ser o mais baixo possível. Não devemos trazer para nossa casa as pessoas com quem não temos contactos diários, ir a casa destas nem estar na rua sem máscara. Com estas medidas adotadas, que já vêm do dia 4 de novembro, só se sentirão resultados se também conseguirmos consciencializar as pessoas de que muitos contágios, pelos vistos, estão a acontecer dentro de portas e o Governo não tem legitimidade para legislar aí. Não pode estar um polícia à porta de cada prédio. Precisamos que as pessoas percebam que, se cumprem fora de portas, têm de tentar cumprir dentro de portas. As medidas anunciadas não poderiam ter ido mais longe. 

“Se fizermos tudo bem hoje, não teremos de fazer nada mais tarde para ter um Natal tranquilo”, disse António Costa sobre o eventual confinamento nas duas primeiras semanas de dezembro. Aplicar restrições à celebração das festividades seria viável após tantos meses de distanciamento social?
Parece-me muito arriscado dizer, nesta fase, que, se fizermos aquilo que temos a fazer, nada mais terá que ser feito. Recordo as palavras do primeiro-ministro, quando desconfinámos em maio, pois disse que não voltaríamos a confinar. E a verdade é que, cada vez mais, parece difícil fugir desse cenário tal como noutros países europeus. Ninguém tem uma bola de cristal nem sabe aquilo que vai acontecer. Em relação à aplicação das medidas, digo claramente: tirem o Natal desta equação. Foram tomadas para tentar controlar a questão neste momento. Não vai haver Natal normal, em qualquer circunstância, porque pressupõe contacto alargado entre familiares e amigos. Estas medidas têm que ver com as previsões que são feitas, porque, se o ritmo de contágio continuar como tem estado, os cuidados intensivos aguentam entre dez a doze dias. É para resolver isto neste momento. Se conseguirmos achatar a curva de infetados nas próximas semanas e vivermos o Natal, ficaremos confinados em janeiro. As coisas não são normais, não serão normais. Estamos a cometer o erro do verão. 

No Facebook, escreveu que “a fase de culpabilizar os portugueses parece ter terminado, assim como ficarmos na expectativa”… 
A mensagem do primeiro-ministro foi muito clara nesse sentido, na inversão da culpabilização. É o erro mais elementar que não se pode cometer: porque não é verdade e não há forma de provar que a população não está a aderir às medidas de contingência. Os países da Europa estão a lidar com esta dificuldade. Dizer que a culpa é dos portugueses carece de validação e conduz a que as pessoas sintam que estão a ser pressionadas e reajam negativamente quando aquilo que queremos é trazê-las para as mensagens política e técnica, para que haja confiança. Quando punimos alguém, aquilo que acontece é o seguinte: quem cumpre as medidas começa automaticamente a olhar para o lado, a ver quem cumpre e não cumpre, policia e moraliza os outros. 

Mas tal não se prende com as falhas da comunicação em saúde, que se deve “aproximar das pessoas concretas” como escreveu no seu Facebook? 
Não se podem colocar certezas. O primeiro-ministro disse que não voltaria a haver confinamento e fiquei muito aflito quando ouvi aquela comunicação. Ninguém, do ponto de vista técnico, sabia aquilo que ia acontecer. Depois de se ter ouvido isso, começámos a ouvir o primeiro-ministro e o Presidente da República [PR] a incentivarem as pessoas a saírem à rua. A mobilidade estava muito limitada. Os mapas de risco epidemiológico tinham de sair cá para fora, naquela fase, para que a população entendesse que a situação estava apenas melhor, mas não tinha passado. Eu tenho chamado à gestão da pandemia o iô-iô: está melhor ou está pior. A mensagem transmitida foi a de que tinha acabado a pandemia. Como é que agora dizem que afinal não acabou? Se dizem que acabou e pode haver espectáculos, como dizem que não podem ser realizados outros eventos? Se tivéssemos tido acesso aos mapas de risco epidemiológico, as pessoas teriam percebido, que o contágio estava baixo e, assim, poderíamos sair de casa com as regras que se devem manter. A utilização das máscaras em espaços fechados ou a etiqueta respiratória, que são a base que temos de ter até sairmos desta circunstância. A comunicação errou aí e eu, em julho, disse que estávamos no plano das previsões.

Em julho, em entrevista à RTP, disse que “temos de continuar a ter este grau de cautela na forma como comunicamos com as pessoas sobre aquilo que vai acontecer”.
Não aceito o argumento de que estamos numa inevitabilidade, que teríamos de ter chegado aqui. Possivelmente, teríamos chegado aqui, mas com um risco muito mais espaçado. Num país que perde a capacidade de rastrear, que não reforça as equipas de saúde pública, que é tendencialmente de baixos salários e de precariedade laboral, há a combinação para perder a capacidade de rastrear as pessoas. Um ponto central na minha leitura é que não fomos apanhados desprevenidos, não fizemos aquilo que estava ao nosso alcance e não estamos a informar as pessoas somente agora. Não é no final do jogo que se faz o prognóstico: foi feito há três meses.

É curioso que faça essa analogia, porque, há uma semana, na entrevista que concedeu à RTP, Marcelo Rebelo de Sousa disse que “é fácil fazer a previsão depois do jogo feito”.
Mas as críticas foram feitas quando estávamos na primeira parte. Ainda nem estávamos no intervalo. Aquilo que possivelmente aconteceu foi que os decisores políticos não quiseram ouvir. Por motivos diversos, complicados de perceber, talvez um certo deslumbramento com a situação relativamente boa dadas as circunstâncias, em julho. Vimos falta de coordenação das equipas locais e de informação epidemiológica para as autoridades locais, incapacidade de rastrear e manter as pessoas suspeitas ou positivas em casa e grupos vulneráveis muito expostos. E pergunto: o que se fez para reforçar as equipas de saúde pública? Não é no final do jogo que se faz o prognóstico: foi feito há três meses.

Na reflexão A gestão política da covid-19 em Portugal: contributos analíticos para o debate internacional, explicitou que, em traços gerais, os países têm seguido quatro objetivos de gestão: erradicar as cadeias de transmissão, gerir estas cadeias, ignorá-las ou mostrar incapacidade para realizar esta gestão. Escreveu que Portugal se encaixava na segunda linha de atuação. Ainda pensa assim? 
Para responder a esta pergunta teria de saber, no território, nos vários concelhos, qual é a percentagem de incapacidade para compreender as cadeias de transmissão. Mas estes dados não nos foram comunicados e deviam ter sido pelo primeiro-ministro e também pela Direção-Geral de Saúde, semanalmente, para ajudar as pessoas a adaptar os seus comportamentos. a DGS está a insistir muito neste argumento de “não levem para casa pessoas que não façam parte dos vossos contactos diários, mantenham a bolha restrita”. E é fácil de perceber: se eu tiver dez contactos semanais, sem máscara, é muito mais fácil rastrear do que se eu tiver contactos com 40, 50 ou 100 pessoas. É tão simples quanto isto. Nada nos foi dito se mantemos a capacidade de rastrear as cadeias de transmissão no território.

E o que dizer sobre a falta de clareza que se prende com dificuldade na gestão de expectativas da população e o desgaste dos decisores políticos?
Aquilo que claramente respondo é que Portugal tem o dever e a obrigação de integrar o grupo de países que procura a gestão das cadeias de transmissão. Não podemos assumir que teremos zero casos – na Ásia e na Oceânia, seguem essa política – e não temos essa capacidade por vários motivos. Em primeiro lugar, estamos na Europa e temos uma gestão muito difícil das fronteiras. Não há nenhuma política sobre transmissão comunitária para rastreio nas fronteiras. Não é preencher papéis completamente falíveis. Percebemos que os países que erradicaram estas cadeias, mesmo que momentaneamente, tiveram uma política muito coerente na restrição da mobilidade da população e nas fronteiras. Portugal está na Europa e a política europeia tem sido que as fronteiras ficam tal como estão, mas defendo que a testagem tem de ser muito acentuada. Foi isso que descontrolou os casos da Europa no verão. A República Checa, na primeira vaga, esteve fantástica, teve poucos casos, e ficou no corredor verde para o turismo. Foi o primeiro a descontrolar.

Marcelo Rebelo de Sousa esclareceu que nenhum país, como Espanha ou França, “pode dar lições porque eram fortes na primeira [vaga], falharam na segunda" e, a seu ver, "tiveram soluções variadas".
Aquilo que o PR disse, e é verdade, é aquilo a que chamo o iô-iô. Não há nenhum país que esteja absolutamente bem ou um que esteja absolutamente mal. Não fomos bons alunos e agora estamos a ser maus alunos: são momentos. Não podemos assumir que teremos zero casos, como mencionei, porque a população também é extremamente envelhecida, as condições socioeconómicas são desfavoráveis, os idosos começaram a trabalhar em criança e têm reformas baixíssimas assim como uma elevada carga de doenças. Tudo aquilo que é mau para este vírus. Temos de gerir cadeias de transmissão: vão surgindo, vamos identificando-as, as pessoas ficam em isolamento ou quarentena e vamos apagando estes fogos. Portugal tinha de ir mostrando os mapas de risco epidemiológico para se perceber como as áreas metropolitanas, concelhos e freguesias iam estando. Sempre com a ideia de que tinha de se rever a situação e adaptar os comportamentos, explicando também critérios de exceção. Parece que estamos a falar de um país como a Alemanha, mas Portugal é tão pequeno e não tem no terreno capacidade para fazer uma monitorização epidemiológica local? Com que critérios, com que motivos? Impreparação.

Escreveu no Facebook que “vivemos tempos difíceis: devemos saber interpretar os anseios de uma população cada vez mais cansada, fragmentada e descrente”. O PR avançou que "a sociedade está fatigada, lassa”, apontando que existem as crises económica e social e que a política deve ser prevenida. A seu ver, esta já existe?
Não acho que haja uma crise política se isso significar a dissolução da Assembleia e a formação de um novo Governo. Não vejo sinais claros no sentido de que as eleições levassem à constituição de um Parlamento completamente diferente. Há uma crise de confiança política, é esse o problema que enfrentamos, e esta reflete um problema político. Porque houve menor diálogo, tanto que o PR teve de chamar a Belém todos os atores do sistema de saúde que manifestaram preocupações por não estarem a ser ouvidos. Esta falta de participação transparece. Não se trata de gostar ou desgostar do Governo, é uma questão muito mais ampla. Por exemplo, o PSD tem demonstrado capacidade de entender que tem de existir um consenso. É o tipo de posição de que precisamos: garantir consenso no Parlamento e que a população percebe a ação dos partidos e que gerimos uma situação que deve ser o mais abrangente possível. Se voltarmos a ter um confinamento, será mau para os doentes Covid e não covid, as pessoas que trabalham, aquelas que não trabalham, o Governo, as crianças, os idosos… para toda a gente, não há ninguém que fique por cima.

Tem sido veiculada a ideia de que a desinformação constitui uma pandemia que anda de mãos dadas com a do coronavírus. Que impacto tem tido a eventual falta de literacia mediática dos cidadãos na forma como lidam com as informações diárias sobre a covid-19?
Não consigo ter uma resposta clara porque é um paradoxo. Vivemos na era da informação e, mais do que isso, na era da educação. Temos a população mais escolarizada de sempre. E vemos que as fake news atravessam estratos escolarizados da população, ou seja, há iliteracia e incapacidade de interpretar informação. Não consigo perceber como é que estas pessoas não entendem regras elementares como analisar criticamente a informação, verificar fontes e conteúdos antes de fazer uma partilha. O aumento dos níveis de educação colide com a leitura e reprodução de fake news.

Será que tal acontece pelo elevado fluxo de informação?
As pessoas podem ser bombardeadas por informação se a souberem filtrar. Não têm literacia em geral. Neste caso, se estas pessoas utilizam as redes sociais, é como dar um Ferrari a quem não sabe conduzir. Porque as pessoas ficam com um manancial de informação curta, rápida, chocante e chamativa, mas não sabem o que fazer com ela. Para mim, há uma pandemia de desinformação que explica a fragmentação e as  informações contraditórias. Mas quem já reproduz informação sem perceber aquilo que está a fazer não está sensível a questões de fact-checking, por exemplo. Quem verifica as fontes está interessado em distinguir a verdade da mentira. Mais grave do que isto é o facto de os atores políticos fazerem uso da desinformação. Temos o caso paradigmático do Trump: disse que haveria uma vacina até ao dia das eleições. Isto é explosivo.

É assim que surgem as posições negacionistas? O que pensa acerca de movimentos, como aqueles que têm surgido nas redes sociais, em que a desobediência civil é promovida? 
Os negacionistas alimentam tudo isto, mas não é causado por eles. Mesmo se não estivermos numa pandemia, a desinformação circula. Há grupos de pessoas que acreditam em teorias mirabolantes no sentido em que há evidência científica que prova que algo não acontece de certa forma. Há quem acredite que a covid-19 é um vírus geneticamente modificado em laboratório, mas, se algum descanso podemos ter, é sabermos que cientistas de todos os países olham para o vírus. Há factos contra factos. As pessoas preocupam-se com a oscilação da informação: usa máscara, não usa máscara, transmite-se por gotículas, fica nas superfícies 24 horas… Mas é perfeitamente normal, quando estamos à procura da verdade, que seja provisória. E, neste momento, todas as evidências mostram que este vírus, geneticamente, é muito semelhante ao dos animais no mercado em Guangzhou. Há coisas que não são claras, como haver ou não vestígios deste vírus nas águas residuais em Itália ou em Espanha já em dezembro. Não explicamos isto, o que significa que se calhar o vírus já estava em circulação muito antes de ter sido detetado. Há peças do puzzle que ainda não conseguimos detetar, mas daí a dizer que este vírus foi criado para acabar com o Ocidente… a China fez a gestão do vírus de modo a ter o menor prejuízo possível, mas isso é geopolítica internacional. 

Qual é o caminho a seguir?
Tem de haver uma maioria de pessoas que confie nas instituições. Haverá sempre quem faça ruído. Não estamos a agarrar essa maioria, mas sim a tratá-la muito mal, sem ouvir os seus anseios ou cuidar dela. Sentem-se perdidas, mas querem saber o que devem fazer para se protegerem e aos seus. Por isto é que a informação tem de ser muito clara e transparente. Se alguém diz que não é possível fazer uma comunicação de verdade e de proximidade, que olhe para a primeira-ministra da Nova Zelândia. Diz claramente “Isto é aquilo que eu sei, isto é aquilo que eu não sei” e explica que as coisas podem correr mal.

Os políticos têm medo ou vergonha de dizer que não sabem?
Há falta de preparação. Temos de dizer às pessoas aquilo que sabemos. 

Já referiu que, para si, é “irrelevante chamarmos uma segunda vaga ou um pico” porque a questão prende-se com o aumento ou decréscimo de contágios. Em julho, a Associação de Escolas de Saúde Pública da Região Europeia, definiu uma segunda vaga como um “ressurgimento” da pandemia que deve ter em conta o aumento exponencial de casos num determinado período e zona territorial e o crescimento dos contágios que se segue ao quase desaparecimento de novos infetados ou à modificação de comportamento do agente infeccioso. Atualmente, vivemos uma segunda vaga ou pico do vírus?
Para que haja uma segunda vaga tem de haver um período com número de casos residual, ou seja, teve de se interromper um primeiro momento. Em Portugal, e a ministra da Saúde esteve bem a dizer isso, estamos numa terceira fase. Tivemos muitos casos no início. Depois, por via da região de Lisboa e Vale do Tejo tivemos uma “barriga”. Na última semana de julho e nas três primeiras de agosto, estivemos bem e, a partir dai, começámos a subir. Primeiro, ligeiramente e, depois, muito. Não estamos numa segunda vaga, mas sim num terceiro momento de crescimento. Há países que claramente tiveram uma quebra e agora estão a ter uma segunda vaga. Depende. E se analisarmos as regiões do país, pode ser adequado ou não falar em segunda vaga. Chamem-lhe aquilo que quiserem chamar, o número de casos está a aumentar. Ponto.

Em 2018, através do capítulo Recursos Humanos na Saúde, que integrou Relatório de Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, entendeu que Portugal desconhece o número de profissionais de saúde que estão a trabalhar, mencionando que tal “ameaça qualquer definição política de prioridades de recursos humanos” e não se conseguia perceber em que especialidades e valências faltavam profissionais. Acredita que este paradigma influenciou a capacidade de resposta dos cuidados de saúde primários às necessidades dos utentes Covid e não Covid desde março?
E quanto tempo andámos a contar o número de camas do SNS? E nos cuidados intensivos? E nem sabíamos a quantidade de ventiladores que existia. Desconhecemos o número de profissionais que trabalha no sistema de saúde e, a partir daqui, tudo se torna mais difícil. Como é que vou planear as minhas necessidades? Muitos dos profissionais surgem em duplicado, trabalham no público e no privado. A questão dos recursos humanos não foi resolvida. Se existirem contágios em equipas de saúde, como é que vou saber quem contratarei? Não sei se o profissional que pôs baixa é o mesmo que trabalha no privado, nos dois setores. Deste ponto de vista, estamos relativamente às cegas porque não fizemos um planeamento de cenários operacional em relação àquilo que é a vida das instituições. E se não existirem profissionais disponíveis? Não é quando os problemas surgem que vamos contratar profissionais de saúde. Na guerra, o general diz “vai meia dúzia para ali e meia dúzia para acolá”? Não fizemos um bom diagnóstico da situação, não percebemos onde estávamos fracos, onde estávamos bem e aquilo que precisaríamos de fazer para reforçar os recursos de imediato se fosse necessário. Era óbvio que estávamos vulneráveis na área da saúde pública.

Como é que se pode construir a força de trabalho na saúde que responda às necessidades populacionais, como sugeriu em 2018 em A call for action to establish a research agenda for building a future health workforce in Europe?
Saber quantos profissionais existem, em que unidades, aquilo que fazem, quantas horas trabalham e quanto ganham exatamente. E outras coisas essenciais como a formação ou se os utentes estão satisfeitos com o atendimento. Nos setores público e privado. Não sei quanto é que ganham, há variações contratuais muito grandes dentro dos mesmos grupos profissionais. 

E as lideranças fortes?
Sabemos que as lideranças intermédias, como chefes e diretores de serviço, chegam a ser uma caixa negra. São fundamentais para o desempenho das equipas, mas muito pouco escrutinadas do ponto de vista daquilo que fazem. São um ponto central no sucesso da prestação de cuidados, mas sabe-se pouco quais são, por exemplo, as necessidades de formação ou a avaliação do desempenho das mesmas. Aqui, as unidades de saúde familiar avançaram mais porque há um conjunto de critérios em que os vários profissionais prestam contas, digamos assim. No setor hospitalar, temos pouca informação sobre desempenho. Precisa claramente de uma reforma para percebermos aquilo que acontece entre aquelas paredes. Não entendemos a força de trabalho quer em qualidade quer em quantidade.

Em 2017, em Listening to doctors on patients’ use of healthcare during the crisis: uncovering a different picture and drawing lessons from Portugal, explicou que nos anos de 2013 e 2014, pós-crise financeira de 2008, muitos pacientes requisitaram medicação mais barata ou simplesmente pararam os tratamentos que levavam a cabo. Uma das conclusões a que chegou foi a de que a capacidade que os utentes tinham para recorrer aos cuidados de saúde, nomeadamente do SNS, diminuiu. Agora, com a pandemia de covid-19, sabe-se que muitos diagnósticos de doenças como o cancro não são feitos. É possível fazer um paralelismo entre estes dois períodos?
Acho que não. Aquilo a que estamos a assistir é a um reforço do SNS em termos de dotação orçamental. Portanto, tem muito mais dinheiro do que tinha em 2013 ou 2014. Este reforço não é só de financiamento, mas também de recursos técnicos como ventiladores, medicamentos ou camas. A questão é que, com o aumento do número de infetados, o SNS fica concentrado nos doentes Covid. A eventualidade de haver uma quebra de rastreios noutras doenças não tem que ver com um desinvestimento na saúde, mas sim com a incapacidade que qualquer sistema de saúde tem de gerir o descontrolo de surtos. Em Portugal ou em qualquer país. E os serviços de saúde poderão deixar de dar resposta aos doentes não Covid com todo o prejuízo que tal acarreta. 

Escreveu “Parece relativamente óbvio que a covid-19 terá que fazer parte da normalidade imediata, pelo menos enquanto uma ou várias vacinas aguardam, primeiro, por produção laboratorial e, depois, por produção industrial”. Como é que a sociedade pode aprender a viver com e nesta pandemia?
Até haver uma vacina, temos de pensar que o iô-iô vai subir e descer e implementar mapas de risco epidemiológico. Onde houver muito risco, dizer às pessoas que podem fazer x ou y coisa, mas explicar que, quando o panorama piorar, terão de deixar de o fazer. Permitir que as pessoas façam a gestão do seu dia a dia porque é possível manter alguma normalidade, ir ao restaurante, ir ao café, ir ao ginásio, ir pôr as crianças à escolas com alguma consciência sobre como a transmissão acontece. E, para isso, é determinante que reduzamos os contactos de risco. Temos de perceber que não podemos estar com muitas pessoas diferentes porque não só isso aumenta a probabilidade de contágio como não nos lembraremos de todas as pessoas com quem estivemos. Acho que os comportamentos devem ser adequados ao risco temporário existente, mas tem de haver informação muito clara. Como princípio-base, as pessoas têm de recorrer às medidas de proteção que conhecemos. É chato não fazer jantares em casa, mas, se tivermos de ficar confinados, será muito pior. Não estamos isentos de ficar contaminados, temos de receber a informação e perceber aquilo de que podemos abdicar no quotidiano para não abdicar do essencial depois.