A República e os Açores com as sequelas do vale tudo


Era expectável que a rutura com a tradição da formação dos governos, proporcionando a que vencia as eleições o mandato para governar, tivesse, mais tarde ou mais cedo, projeções negativas como está a acontecer na Região Autónoma dos Açores.


O título poderia ser o “Karma é lixado” ou qualquer variante que sublinhasse que uma determinada ação humana divergente da racionalidade pode conduzir a consequências imediatas ou diferidas negativas em relação à ânsia ou ao desespero da solução imediatista de “vale tudo”.

Estive, em 2015, no grupo restrito de socialistas que sustentou, nos órgãos próprios e em público, que quem ganhava as eleições deveria governar e que a solução de governo com BE e PCP era suscetível de ser incompatível com marcas de moderação do Partido Socialista ao longo da sua história na Democracia. Perante a incapacidade de António Costa para fazer o que se tinha proposto, ganhar com margem confortável, a escapatória foi a de quebrar com a tradição democrática consolidada e engendrar um solução de sobrevivência e de acesso ao poder com a esquerda à esquerda do PS, mesmo com quem em 2011 não tinha hesitado em derrubar o governo socialista e abrir as portas ao governo à direita de Passos e Portas. Não tendo ganho as eleições legislativas de 2015, o vale tudo de António Costa foi o de valorizar a vontade popular projetada no parlamento, renunciar à tradição na formação do governo e escolher os parceiros para a caminhada. Esta arqueologia da história política, serve para sublinhar que estive contra, tal como Vasco Cordeiro, mas em divergência com o atual secretário-geral, António Costa, e o atual presidente do PS, Carlos César. Ambos impulsionaram as soluções, os dois ensaiaram recentemente indignações perante sequelas das suas opções de “vale tudo”, aquando do voto contra do Bloco de Esquerda em relação à votação na generalidade do Orçamento de Estado para 2021 e dos resultados nas eleições regionais dos Açores.

Era expectável que o compromisso do PCP e do BE com uma solução de governação liderada pelo PS estaria sempre sujeita à captura do fanatismo ideológico e à imaturidade política dos parceiros escolhidos pela maioria dos socialistas, com a agravante de as concessões para a manutenção das convergências implicarem concessões em relação à matriz histórica do partido. Entre um PCP que nunca deixou de ter um pé na solução governativa e o outro na rua, a protestar contra aquilo que tinha validado com a aprovação de 4 Orçamentos de Estado e um BE sempre a procurar alimentar os seus nichos eleitorais, custasse o que custasse, mesmo implicasse menos investimento no SNS ou na Escola Pública, só pode haver comoção e indignação perante os votos contra no OE para 2021 de quem não tiver memória e vergonha na cara.

Era expectável que a rutura com a tradição da formação dos governos, proporcionando a que vencia as eleições o mandato para governar, tivesse, mais tarde ou mais cedo, projeções negativas como está a acontecer na Região Autónoma dos Açores. A singularidade do golpe de asa de 2015 perante a derrota nas legislativas é similar à aplicação da mesma filosofia política de “vale tudo” para a formação de uma solução de governo de direita, por quem não venceu as eleições, mas consegue arregimentar mais mandatos parlamentares para uma solução de governo, ainda que com o contributo do anti autonomista Chega. O impulso é o mesmo, há variações na solidez e convergência de interesses dos protagonistas, mas o grave é acontecer num contexto de emergência de saúde pública e com o Presidente da República sem condições para poder superar impasses ou crises políticas. Apesar da margem autonómica de ação, a questão é saber se o esforço de construção de uma imagem de estadista de Rui Rio, comprometido com o interesse nacional, se vai permitir conviver com a integração familiar do Chega para a afirmação de um “vale tudo” político nos Açores, que o PSD tanto contestou na República. Em condições normais e tradicionais, a resposta seria negativa, mas desde 2015 que a tradição, a coerência e a verdade já não são o que eram.

Na mesma linha de expectável, na República, na Europa e no Mundo, era previsível que o último trimestre de 2020 fosse marcado pela emergência de um galopante impulso de contágio pandémico. Por maiores que seja o desnorte e a construção de narrativas, é incompreensível que perante o recrudescimento dos caos positivos se estejam a anunciar medidas de ampliação dos recursos humanos e materiais de resposta que deveriam estar ativados agora e não a ser objeto de obra ou de concurso para contratação. Ninguém compreende que podendo as burocracias terem sido realizadas em julho, agosto ou setembro, só aconteçam com a pandemia efervescência e a pressão no SNS nos limiares do suportável, sem afetar os doentes não covid. Como ninguém compreende porque razão num estado de necessidade se prescinde de um compromisso com os privados da saúde para a disponibilização imediata de respostas, algo que, mais tarde ou mais cedo, será imposto pela Presidência da República, tornando insustentável os arremessos proferidos, por exemplo, pela ministra da Saúde. A manutenção de convergências com as esquerdas não pode comprometer as evidências e as necessidades gerais, numa renovada expressão de “vale tudo” para manter o poder.

Não ter em conta o expectável e enveredar pelo “vale tudo” em política só pode dar maus resultados. Mesmo que se conte com a apatia ou a satisfação de ocasião da maioria dos cidadãos, existirão sempre interesses maiores e questões estruturais que precisam de visão, de capacidade de concretização e avaliação. O “sabe tudo” como o “vale tudo” são cada vez mais reais, embora do domínio da efabulação, as suas manifestações acabam por ser negativas e amiúde trágicas. Já vai sendo tempo de despertares cívicos e comunitários por maior rigor, exigência, explicação e transparência. E já vamos tarde.

NOTAS FINAIS

SÃO PAPOILAS SALTITANTES. A pujante manifestação de vontade dos sócios do Sport Lisboa e Benfica e a vitória inequívoca de Luís Filipe Vieira sublinham a singularidade da força do clube, o compromisso com a memória e a ambição de ser resiliente perante o quadro pandémico, afirmando a competitividade desportiva das equipas e das modalidades. Sendo tempo de realizar esforços de reforço da união, sem esquecer as linhas vermelhas ultrapassadas na campanha eleitoral pelas alternativas, e de respeito pela expressão da vontade da maioria, é também uma oportunidade para definir um novo quadro de referência na relação com os sócios. Tarjas como a que foi colocada no jogo da Liga Europa são inaceitáveis e nada têm a ver com a liberdade de expressão, são serviços prestados aos adversários e às CMTV’s desta vida. Miserável.

BRINCAR COM COISAS SÉRIAS. A arbitragem do jogo Paços de Ferreira-FCPorto ultrapassou todas as linhas vermelhas da falta de vergonha, devendo só ser defendida pelo insolvente da comunicação do clube ou por um qualquer adjunto de indigência criativa. Isso e o prejuízo de 116 milhões de euros.

Escreve à segunda-feira