Uma outra montanha mágica

Uma outra montanha mágica


Rcém-chegado de uma ilha ignota a uma cidade sem nome em busca de trabalho, Mafaldo Limparrim encontra colocação como penteador de manequins numa discreta loja de miudezas, à Rua dos Parâmetros Assertivos. O dono passava a maior parte do tempo na vilória do Poço Novo, numa encosta de montanha da qual se dizia que os…


Rcém-chegado de uma ilha ignota a uma cidade sem nome em busca de trabalho, Mafaldo Limparrim encontra colocação como penteador de manequins numa discreta loja de miudezas, à Rua dos Parâmetros Assertivos. O dono passava a maior parte do tempo na vilória do Poço Novo, numa encosta de montanha da qual se dizia que os ares eram pouco saudáveis. Quando Mafaldo vai ao encontro do patrão, à cata de instruções, começa também uma viagem de elétrico por um novo mundo que os quadradinhos portugueses até agora ignoravam, ciceroneado pelo lápis e pelas palavras de Paulo J. Mendes (Porto, 1965), autor e fanzinista durante 30 anos afastado da BD, mas não desligado das artes visuais, e cujo gosto retomou quando mão amiga fez chegar umas quantas novelas gráficas, género consagrado principalmente por Will Eisner.

Na apresentação, Mendes dá-nos o grande plano da narrativa: “Um território imaginado de contornos perfeitamente definidos, um punhado de situações surrealistas e algumas peripécias vagamente baseadas em vivências reais, tudo temperado pelo gosto por paisagens e arquiteturas pitorescas, arte sacra e talha barroca, os elétricos desde sempre acarinhados e sem esquecer a evocação, transpondo para o plano da fantasia, duma fascinante e estranha capela perdida – sim, existe mesmo –, enigmática e quase tumular, com a qual tinha dado de caras há uns anos ao percorrer certas serranias do Alto Minho”.

Mafaldo sobe de elétrico (em vez de descer…) ao Poço Novo, tímido e receoso dos tais maus ares, pois quem de lá vem chega sempre num estado alterado de consciência, o que não é de admirar, já que nessa vila come-se bem (favas com chicória é o prato típico) e bebe-se melhor (o célebre “licor garganta”, do pároco); além disso, em cada esquina um amigo, e na porta em frente a possibilidade de uma cama com companhia. É todo um novo patamar de relacionamento humano que se abre ao protagonista, Hans Castorp virado do avesso sem divagações sobre o tempo ou colóquios de filosofia política.

O Poço Novo é uma espécie de paraíso terreal de que as autoridades se esquecem; o lugar dá-se bem sem a autoridade. Não obstante, os seus representantes acabam por ser compelidos à vez pelo grupo de pândegos a conhecerem o que vale a pena. “Salsicho”, o autarca, os soberanos Gelásio e Purgantina e o próprio pontífice Dligberto, cada qual em seu elétrico (popular, real ou papal) rumo àquele torrão edénico parado no tempo. Mas o melhor achado é Atrofiel, o anjo-da-guarda estagiário recolhido na Igreja de São Barnabilro, que se empenha com pundonor em assegurar a felicidade de Mafaldo, pese embora a falta de competência.

O Penteador é um delírio a ser lido, um microcosmos pessoal, um osso que o autor não deveria largar.

O Penteador
Texto Paulo J. Mendes Desenho Paulo J. Mendes
Editora Escorpião Azul, Lisboa, 2020

 

BDTECA

Ellis Island Porta de entrada dos imigrantes europeus nos Estados Unidos da América, para alguns barreira inultrapassável e de recambiamento. Uma abordagem tão crua como esplêndida num álbum a que dedicaremos mais atenção. Tomo 1, Bienvenues en Amérique!, texto de Philippe Charlot, desenhos do polaco Miras. Edição Grand Angle, 2020.

Karmela Krimm Outra série que começa, com argumento do consagrado Lewis Trondheim e desenhos de Franck Biancarelli. Karmela Krimm era uma promissora agente policial em Marselha até que um incidente grave envolvendo um figurão local resultou em despedimento. Karmela não se afasta da cidade nem do crime, tornando-se detetive particular. Tomo 1: Ramdam Blues, edição Le Lombard, Bruxelas, 2020.

Quadrinhos contra o preconceito Jeremias, o menino negro da Turma da Mônica, objeto de releitura na coleção Graphic MSP, como tem sucedido com as restantes personagens de Maurício. Nova edição de um livro publicado em 2018, texto de Rafael Calça, desenhos de Jefferson Costa, mostrando as adversidades por que passa Jeremias – e, com ele, todas as crianças na mesma situação – devido à cor da pele e como as ultrapassou. Jeremias – Pele, Panini, 2020.