O país dos ridículos


A realidade é só uma, o desafio pandémico é gigantesco, ninguém estava preparado para algo similar e, por maiores que sejam as distrações, não se fez o suficiente ao longo dos últimos meses.


Enquanto o país mediático, das redes sociais e afins efervesce em torno de uma delirante intenção de obrigatoriedade de instalação de telemóveis, mais inútil que útil pela sua configuração, carregamento de dados dos casos positivos e densidade de utilizadores, há toda uma realidade verdadeiramente importante a acontecer no país real. Nesse país há gente a morrer por falta de assistência não covid-19 ou por degradação do seu estado de saúde, sem os adequados diagnósticos; há gente em dificuldade porque já o estava ou passou a estar com os impactos da crise pandémica; há gente a precisar de respostas em vez de mais do mesmo ou de entretenimentos.

O país dos ridículos é aquele que tem na sua Constituição da República um conjunto de direitos, liberdades e garantias que não são ativados ou são vilipendiados pelos exercícios de poder e pelos poderes paralelos, sem indignações de maior dos cidadãos; que tem a vida vasculhada ou monitorizada por um conjunto de serviços a que aderiu ou pelas pesquisas que faz na internet; que anuncia aos quatro ventos nas redes sociais boa parte da sua vida quotidiana, mas não pode ser obrigado a descarregar uma aplicação sobre a covid-19 porque ela coloca em causa a sua privacidade. Enquanto se discute este acessório, por mais que invoquem direitos fundamentais, não se discute a insuficiência, a impreparação e o esgotamento das respostas de saúde no terreno. E há gente a morrer. No quadro da atual emergência de saúde pública, em que as soluções adotadas são amiúde de duvidosa constitucionalidade e consistência jurídica, o que importa verdadeiramente é a eficácia para produzir os adequados efeitos de combate ao contágio e prestar os cuidados a quem precisa. Num país em que tanta gente usa o vale-tudo para tentar atingir determinados fins, a começar pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República, é espantoso que não recorram a esse modus operandi quando ele pode ser verdadeiramente importante para salvar vidas humanas.

A realidade é só uma, o desafio pandémico é gigantesco, ninguém estava preparado para algo similar e, por maiores que sejam as distrações, os ruídos ou os biombos colocados no presente, não se fez o suficiente ao longo dos últimos meses para preparar a fase que estamos a atravessar. É demasiada conversa e pouca capacidade de concretização no terreno.

É neste país dos ridículos que, ainda sobre este tema, alguém que idolatra um criminoso informático que violou a correspondência de diversas pessoas e instituições vem indignar-se sobre a instalação de uma aplicação por violar a privacidade, numa espécie de rábula da criminalidade de classes em que haveria “piratas bons” e “piratas maus”.

O país dos ridículos é aquele em que o debate sobre o Orçamento do Estado e até sobre a aplicação dos fundos europeus colocados no horizonte é desenvolvido pelos protagonistas de sempre, com reivindicações similares às de sempre e os resultados de sempre, como se a atual situação não fosse diferente de todas, a aconselhar recato a quem tem, ainda que pouco, e a atenção não devesse ser orientada para quem não tem e para quem pode gerar respostas e soluções (do Estado às empresas).

O país dos ridículos é aquele em que, em contexto pandémico e de emergência de saúde, se insiste em manter os preconceitos ideológicos, manter os funcionamentos de serviços centrados nos funcionários, e não nos cidadãos, manter os privilégios e os abusos de posição dominante, manter, manter, quando o tempo é de ajustamento, de justiça social, de solidariedade e de responder ao que ainda não foi feito.

O país dos ridículos, com presença em várias plataformas, territórios e nações, é aquele em que alguns persistem em intoxicar as redes sociais com mentiras e intolerâncias, alguns insistem em negar as evidências e demasiados se acobertam no anonimato e em perfis virtuais falsos ou distorcidos para insultar, manipular e implodir o sentido democrático da participação e da liberdade de expressão, com respeito pela diferença e pela opinião do outro. Em democracia não há nenhuma razão para que o exercício de liberdade de expressão nas redes sociais como nas caixas de comentários dos média não tenha de ser feito em nome próprio, com plena identificação de quem participa. Liberdade e responsabilidade: máximas decisivas para qualquer funcionamento comunitário.

O país dos ridículos é resiliente e insistirá em prosseguir as suas aparições e expressões inusitadas para entreter, distrair, dividir e retirar o foco do essencial, logo agora que tudo e todos são precisos. É um exercício de alto risco, apenas permitido pelos que estão comprometidos com os protagonistas de turno, pela existência de dinheiro no bolso ou pela expetativa de que lhe possa tocar alguma parte, mas pelo caminho deixa um rasto de terra queimada de oportunidades para os populistas e outros que nada tributam à democracia. O país dos ridículos é estado de alma e estratégia. Para alguns, não é defeito, é feitio. Paga o país, pagamos nós.

NOTAS FINAIS

Olha para o que eu digo // Este é um tempo de resiliência e de mobilização. Como cidadãos, devemos fazer o que é útil para a nossa proteção e para a contenção do contágio. É ou deve ser um tempo de mobilização de todos, sem preconceitos. Vale de muito pouco o Presidente da República afirmar que há contactos com os privados da saúde para a sua integração supletiva na resposta global de saúde pública à covid-19 quando ainda não houve contactos. É iludir quem pode precisar!

Olha para o que eu faço // Parece que a gestão da massa falida da dona do saco azul do BES está a reivindicar dinheiro de algumas personalidades. Imagine-se que resolvia fazê-lo com os jornalistas avençados cujos nomes permanecem no olimpo da proteção corporativa há quase cinco anos, mas provavelmente bem visíveis no espaço mediático e a dar lições de moral aos telespetadores, leitores ou ouvintes?

Não olhes // A regulação em Portugal é genericamente miserável. Olha e age de forma seletiva, atua de forma tardia, não explica, não responde aos cidadãos e paira sobre a realidade com complexas interações, inconsistências e desfasamentos com o nosso tempo. É um triste espelho do país dos ridículos.

Pra frente é que é caminho! // Domingo há eleições na Região Autónoma dos Açores. Em 1996 participei com gosto na construção do início da caminhada do projeto do PS na região, um dos mais fantásticos territórios de Portugal. Espero que a confiança dos açorianos no Vasco Cordeiro seja renovada e que amigos como o José Contente possam ser eleitos para continuar a emprestar sabedoria e competência ao projeto insular.

 

Escreve à segunda-feira