Carson McCullers. Ambientes agrestes, espaços solitários

Carson McCullers. Ambientes agrestes, espaços solitários


Ninguém pode ficar indiferente à melancolia de Carson McCullers. São tristes os seus livros? São. Deixam-nos agoniados? Muito. Mas embora sejam tristes, são bonitos demais.


Carson McCullers (1917-1967) é uma escritora norte americana que se estreou muito jovem com o conto “Wunderkind” e aos vinte e três anos vê iniciado o seu trilho literário com O Coração é um Caçador Solitário, seguido de vários, entre eles Reflexos num Olho Dourado, Frankie e o Casamento e mais tarde em 1951 A Balada do Café Triste.

Em todos os seus livros MucCullers traz rente a solidão pelo freio. São livros desconcertantes com sabor a caos, descontrole, impotência. São livros sem pessoas felizes, sem casas felizes, sem casamentos felizes, sem finais felizes, o que vai certeiramente ao encontro do pensamento da escritora que considerava que “as pessoas felizes não têm história”. Será que não têm história mesmo? A verdade é que na ausência de felicidade, o que assistimos em toda a sua obra é a uma aflição angustiante e um sentido inóspito de recusa. Há uma visão implacável do ser humano, do seu teatro, dos seus trejeitos moribundos, da sua capa imunda de remendos.

McCullers dedica Reflexos num Olho Dourado editado pela Relógio D’Água com tradução de Marta Mendonça à fotografa suíça Annemarie Schwarzenbach, outra mulher inquieta, tensa e desassossegada. Sobre ela revelou assim que a viu que o seu rosto a perturbaria para toda a vida, mas a todos também o rosto de McCullers perturbará toda a vida.

Esta presente edição traz estampada na capa uma fotografia sua. É uma fotografia a preto e branco que não esconde o sabor descolorido do vazio e do desalento, da vida como ela cruamente a acabaria por retratar, a preto e branco. As duas, Schwarzenbach e McCullers eram almas que não se permitiam cilindrar por nenhuma farsa galanteadora. A sua visão da realidade não era abaunilhada, nem tinha como propósito ser um tónico da realidade. Logo na primeira frase da Nota Prévia de Morte na Pérsia, Annemarie escreve que «Este livro trará pouca alegria para o leitor. Não o poderá consolar nem reconfortar, como muitas vezes os livros tristes sabem fazer (…). É de falsos caminhos que este livro trata, e o seu lema é a desesperança.»

Esta nota de abertura podia facilmente servir na perfeição a qualquer livro de McCullers. Na verdade, as duas estão muito longe de nos trazer algum conforto ou alegria que seja, pelo contrário. Se há livros que nos dão colo, estas duas mulheres ofereceram-nos o deserto, a luta, a derrota, mas o deserto, a luta e a derrota são carris invisíveis sem volta, e o leitor precisa forçosamente desses carris para nunca mais voltar. Nem todos os livros têm de nos fazer voltar, não. Os livros têm sim de nos chamar para dentro deles, mesmo que dentro deles o regresso seja um apeadeiro esquecido no mapa.

Reflexos num Olho Dourado é um romance sem espaço para o amor correspondido. É a história de dois casais infiéis, o Capitão Penderton e a sua mulher Alison, o Major Morris Langdon e a frágil Leonora.  Alison trai o marido com Morris, os respetivos cônjuges descobrem, mas enquanto que Leonora se descontrola emocional e fisicamente encontrando algum abrigo e amparo do criado filipino Anacleto que no fim não lhe servirá de muito, o capitão Penderton não fica minimamente abalado, e pelo contrário, perde-se de amores por um estranho soldado. Elgee Williams era esse estranho soldado solitário, misterioso, curioso da “doença má das mulheres”. Este soldado é um homem sombrio, inflexível aos seus próprios desejos, mas todos a certa altura acabamos por ser inflexíveis aos nossos desejos, quer sejamos capazes de os cumprir ou não.

Esta inflexibilidade é partilhada por quase todas as suas personagens. Se atentarmos às descrições dos personagens das diferentes histórias, damo-nos conta que todos têm algumas características em comum, e geralmente essas caraterísticas prendem-se com alguma deficiência ou estranheza. Se este soldado Williams (p.10) «parecia ter um porte ligeiramente pesado e desajeitado», o primo Lymon Willis era corcunda e Singer, o personagem central de O Coração é um Caçador Solitário é um surdo-mudo guardador confidente de muitos segredos. Se Miss Amelia, personagem principal aparentemente forte e indestrutível, de A Balada do Café Triste (p.8) «era indiferente ao amor dos homens e preferia a solidão», Alison trai o marido, mas sem sentir nenhuma espécie de amor ou ternura pelos homens com quem se deita. O soldado Williams acaba fatalmente por morrer assassinado em fúria pelo Capitão no quarto de Alison que dormia profundamente sem dar por nada. No fim do romance vamos testemunhar incrédulos que Williams morreu sem que o seu desejo pela Senhora se consumasse, mas por consumar ficará registada a esperança, o futuro ou “esse fenómeno chamado amor”. É maravilhosa a sua definição de amor (p.28) em A Balada do Café Triste «De algum modo, cada amante sabe que é assim. Sente no seu íntimo que o seu amor é solitário. Depois conhece uma nova e estranha solidão, que o faz sofrer ainda mais. De maneira que só lhe resta fazer uma coisa. Deve abrigar dentro de si, o melhor que puder esse amor; deve criar um mundo só seu, intenso e único.»

Na verdade, é mesmo assim a escrita de McCullers, um mundo fechado sobre o seu avesso, sobre a homossexualidade, a nostalgia, a violência, o abismo social. Facilmente podemos constatar que não são apenas as suas personagens que são dotadas de um vazio extremo, também encontramos esse vazio e esse desespero alastrado a todos os palcos onde elas deambulam. Todas as suas ruas são vazias, silenciosas e poeirentas, a messe era gelada bem como o seu dormitório, a cantina ou os estábulos. Os cafés, tanto o de Miss Amelia em A Balada do Café Triste ou o de Biff Brannon em O Coração é um Caçador Solitário são lugares revestidos de palidez e apatia. São lugares desolados, murchos. Esta é sem dúvida uma escrita inflexível que nos toma de assalto, nos faz estremecer e seguir descalços em cada trama. Há um rasto de amargura que nos prende a cada diálogo como se de resina se tratasse, mas não há escapatória possível. Do seu livro The pleasure of the Damned (1951-1993) Charles Bukoswksi eternizou esta escritora fabulosa num poema cujo título é o seu próprio nome Carson McCullers «Ela morreu de alcoolismo/ envolta em um cobertor/ em uma espreguiçadeira /em um navio a vapor do oceano./ Todos os seus livros de solidão aterrorizada/ todos os seus livros sobre a crueldade do amor sem amor/eram tudo o que restava dela assim que o turista passeando/ descobriu seu corpo notificou o capitão e ela foi rapidamente enviada para outro lugar no navio/ como tudo continuou exatamente como ela tinha estado.»

São ambientes agrestes? São. São espaços solitários? Muito, mas embora sejam solitários são verdadeiros demais.