Da estratégia à realidade


A não recondução do presidente do Tribunal de Contas demonstra que no nosso país podem existir imensas estratégias e visões estratégicas, mas que ninguém está disposto a implementá-las, e que aqueles que chegam a acreditar nelas são rapidamente removidos.


Mal se soube da chegada de milhões em fundos europeus para obras públicas, o Governo apresentou de imediato ao Parlamento a Proposta de Lei 41/XIV/1ª, a qual propõe estabelecer um regime excepcional de contratação pública, à margem do Código dos Contratos Públicos para determinadas áreas escolhidas, onde se privilegiam procedimentos fechados de adjudicação em lugar de concursos públicos. Chega-se ao ponto de propor que “as entidades adjudicantes reservem a possibilidade de ser candidato ou concorrente, em procedimentos para a formação de contratos de valor inferior aos limiares das diretivas, a micro, pequenas e médias empresas e a entidades com sede no território do município em que se localize a entidade adjudicantes, neste último caso se estiver em causa a locação ou aquisição de bens móveis ou a aquisição de serviços de uso corrente”.

Tendo sido solicitado pela Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação o competente parecer ao Tribunal de Contas, este veio no passado dia 28 de Setembro enviar um parecer muito crítico sobre o diploma em questão. No entender do Tribunal de Contas, as alterações “(1) Por um lado, rompem com linhas de evolução legislativa desde 2008 (…) sobre as garantias de imparcialidade, transparência, igualdade, não discriminação, efetiva concorrência e ponderação do custo benefício em sede de contratação pública; (2) Por outro (…) chocam com orientações preconizadas em anúncios contemporâneos de políticas públicas, nomeadamente as constantes da ‘Estatégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024’, recentemente colocada em discussão pública, e a importância da ‘prevenção como vetor essencial’ nesse domínio (…)”. O Tribunal de Contas afirma por outro lado estas “opções são suscetíveis de potenciar más práticas na contratação pública, com o privilégio de certas entidades em detrimento de outras, que poderão transformar o mercado nacional de contratação pública em múltiplos e pequenos mercados de índole regional e local”.

Por esse motivo o Tribunal considera que estas alterações, “traduzidas no fecho do mercado da contratação pública, ficando o mesmo reservado a um conjunto de entidades escolhidas pela entidade adjudicante, ou apenas a uma, em função do território em que a mesma se encontre sediada (restrição geográfica), são suscetíveis de contribuir para o crescimento de práticas ilícitas de conluio, cartelização e até mesmo de corrupção na contratação pública, no pressuposto genericamente aceite de que a atividade de contratação pública é um campo fértil e de risco acrescido para esse tipo de atuação ilícita”.

Consta que imediatamente a seguir a este parecer, o primeiro-ministro comunicou ao presidente do Tribunal de Contas que não seria reconduzido no cargo, ao arrepio do que tem sido a tradição deste Tribunal. Efectivamente foram sempre reconduzidos os seus anteriores presidentes, como Alfredo José de Sousa (1995-2005), e Guilherme de Oliveira Martins (2005-2015).

Em qualquer caso, o que esta situação demonstra é que no nosso país podem existir imensas estratégias e visões estratégicas, mas que ninguém está disposto a implementá-las, e que aqueles que chegam a acreditar nelas são rapidamente removidos. A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção morreu assim, escassos dias depois de ter sido apresentada. Requiescat in pace.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990