A economia circular e a logística

A economia circular e a logística


A introdução da economia circular exige mudanças muito profundas em todas as dinâmicas económicas e conflitua claramente com os princípios de marketing da economia de consumo que temos instalada, baseados na rápida obsolescência dos produtos e na propriedade individual dos bens.


O conceito de economia circular aparece-nos fortemente reforçado pela nova agenda europeia para o desenvolvimento sustentável, que criou condições para a adoção de um plano de ação para a economia circular.

O novo plano apresenta medidas em vários domínios e foca-se nos setores com mais intensidade de uso de recursos e onde, por isso, o potencial de circularidade é superior, nomeadamente nos setores: eletrónica e sistemas inteligentes; baterias e veículos; empacotamento; plásticos; têxteis; construção e edifícios; alimentação; água e nutrientes.

A economia circular é uma abordagem sistémica, regenerativa, baseada em três princípios:

• Desenho de produtos e serviços minimizando impactos negativos sobre a saúde humana e sobre os sistemas naturais;

• Longevidade de produtos e materiais;

• Regeneração dos sistemas naturais.

Destes princípios decorre imediatamente a ideia de que a economia de consumo sustentada pela globalização não poderá contribuir para esta ideia de circularização.

De facto, não obstante a eficiência da manufatura e da distribuição de mercadorias, o uso e consumo de materiais está associado a níveis elevados de produção de resíduos, que varia muito com o tipo de cadeia de abastecimento. Segundo a OCDE e o Banco Mundial, o consumo mundial de matérias-primas, como a biomassa, os combustíveis fósseis, os metais e os minerais, deverá duplicar nos próximos 40 anos, prevendo-se que a produção anual de resíduos aumente 70% até 2050.

Em algumas cadeias, mais de metade dos materiais usados são queimados ou descartados e apenas uma pequena parte é reciclada. Em Portugal, em 2019, 57,8% dos resíduos urbanos foram para aterro, sem qualquer revalorização. A produção anual de resíduos provenientes de todas as atividades económicas na UE ascende a 2,5 mil milhões de toneladas, ou seja, cinco toneladas per capita por ano, produzindo cada cidadão, em média, quase meia tonelada de resíduos urbanos. Este crescimento está obviamente associado ao crescimento económico. Há várias razões para explicar esta situação mas, com frequência, os principais argumentos estão relacionados com os custos de abastecimento de novos materiais por oposição ao abastecimento com materiais reciclados.

Portanto, estratégias sustentáveis podem ter custos não compatíveis com os atuais modelos de negócio.

Embora as cadeias de abastecimento numa economia circular possam parecer idênticas às de uma economia convencional, na verdade, têm três diferenças fundamentais:

– O desenho do produto e o contexto de consumo são diferentes. Numa economia circular, os produtos são concebidos para uma maior longevidade e para serem reprocessados no final do seu ciclo de vida;

– Numa economia circular é assumido que a maioria dos produtos são partilhados (especialmente os bens de capital), o que tende a aumentar a sua utilização, pois menos recursos são utilizados para o mesmo nível de serviço;

– A recolha de matérias usadas ou consumidas, biológicas e tecnológicas, para vários propósitos de reprocessamento, faz com que a cadeia de abastecimento deixe de ser linear e passe a ser um processo permanente de feedback, com dois subsistemas distintos, o dos bens biológicos e o dos bens tecnológicos.

Fica assim claro que a introdução da economia circular exige mudanças muito profundas em todas as dinâmicas económicas e conflitua claramente com os princípios de marketing da economia de consumo que temos instalada, baseados na rápida obsolescência dos produtos e na propriedade individual dos bens.

Outra das implicações da circularização é na logística inversa, com impactos muito significativos e a exigir investimentos avultados, especialmente no que aos bens tecnológicos respeita.

A manutenção junto do local de uso será indispensável para assegurar o nível de serviço dos bens ao longo de um ciclo de vida mais extenso. A transferência do produto de um utilizador para outro vai exigir reconsiderar processos de recolha, manutenção, armazenamento no distribuidor e entrega. A produção de um novo produto a partir de outro similar implica a reforma de alguns componentes e, por vezes, exige adicionar novos componentes para as partes que não podem ser recuperadas; só depois o novo produto pode ser reintroduzido na cadeia de abastecimento. A reciclagem implica a recolha de materiais, triagem e revalorização através de processos diferentes para os diferentes propósitos.

Fica também claro que a adoção da economia circular tem implicações profundas nos processos logísticos, para os quais são necessárias condições de infraestrutura e de operação.

Em conclusão, assumir que vamos convergir para uma economia circular sem considerar, e apoiar, a transformação de modelos de consumo, modelos de negócio da produção, infraestruturas e sistemas logísticos de apoio é uma enorme ingenuidade. O processo de transformação a que a UE aderiu exige uma abordagem sistémica que associe indústria, investigação, inovação e forte participação pública.

 

Professora e investigadora em transportes no Instituto Superior Técnico