A maior crise de sempre na justiça portuguesa


Todos os acusados têm direito à sua defesa e beneficiam da presunção de inocência. No entanto, tudo o que tem vindo a público sobre o funcionamento durante vários anos de um dos mais importantes tribunais superiores do nosso país é motivo de grande preocupação.


A dedução de uma acusação contra vários magistrados de um dos nossos mais importantes tribunais superiores constitui a maior crise de sempre na justiça portuguesa. Naturalmente que todos os acusados têm direito à sua defesa e beneficiam da presunção de inocência, competindo aos tribunais julgar o respectivo processo com independência. No entanto, tudo o que tem vindo a público sobre o funcionamento durante vários anos de um dos mais importantes tribunais superiores do nosso país é motivo de grande preocupação e mina totalmente a confiança dos cidadãos no nosso sistema de justiça. Ora, a justiça é um dos pilares do Estado de direito democrático, pelo que não se pode permitir que os cidadãos percam a confiança na mesma.

A lesão da confiança dos cidadãos na justiça repercute-se, por outro lado, gravemente na actividade dos advogados, a quem compete convencer os cidadãos de que devem dirimir os seus litígios nos tribunais. Se os cidadãos tiverem a mínima suspeita de que os tribunais poderão não julgar o seu caso de forma independente e imparcial não quererão recorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos e todo o trabalho dos operadores judiciários será posto em causa.

É por isso que nos parece que a gravidade deste caso e das suas consequências para o nosso sistema de justiça não pode ser desvalorizada pelo discurso oficial. Temos ouvido dizer que isto é a demonstração de que as instituições funcionam, uma vez que inclusivamente acusam magistrados de tribunais superiores. A verdade, no entanto, é que seria impensável que o contrário se passasse, uma vez que num Estado de direito ninguém está acima da lei e todos podem ser sujeitos à acção da justiça. Mas o facto de um tribunal superior poder ter funcionado de forma irregular durante tanto tempo mostra que não está instituído um sistema de controlo adequado, designadamente através de inspecções judiciais ao seu funcionamento.

A situação ainda se agrava mais por estar em causa a secção criminal desse tribunal, onde poderão ter ocorrido condenações penais efectuadas de forma irregular, com a lesão do direito fundamental à liberdade das pessoas. E neste âmbito há que reconhecer que o art.o 449.o do Código de Processo Penal estabelece requisitos demasiado apertados para o recurso de revisão, podendo, no limite, ter de se aguardar por uma sentença transitada em julgado que dê como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo. Assim, durante todo o tempo que durar o processo até ao trânsito em julgado da decisão final, poderão estar na prisão cidadãos condenados injustamente.

Por esses motivos, parece-nos que deverão ser adoptadas pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo poder político medidas que permitam corrigir as injustiças que possam ter sido praticadas neste âmbito. Deveria, em primeiro lugar, ser efectuada pelo Conselho Superior da Magistratura uma sindicância ao funcionamento desse tribunal, averiguando quais as decisões que possam ter sido proferidas de forma irregular, para permitir aos interessados ou até ao Ministério Público, enquanto garante da legalidade, promover a revisão das mesmas. Ao mesmo tempo deveria o poder político promover a alteração do Código de Processo Penal, dilatando os pressupostos do recurso de revisão em ordem a permitir abranger claramente este tipo de situações. Deveria ser também alterado o sistema de recurso penal em segunda instância, em que a decisão é apenas proferida por dois desembargadores, quando deveriam ser três, como antigamente ocorria, em ordem a reforçar a segurança das decisões. E, por último, deverá ser reforçado o sistema de inspecções judiciais, em ordem a permitir uma intervenção imediata do órgão disciplinar competente sempre que haja suspeitas de qualquer conduta irregular por parte de um magistrado.

Há um longo caminho a percorrer para que a confiança na justiça possa ser recuperada. Mas os cidadãos não nos perdoarão se não dermos imediatamente os passos necessários para percorrer esse caminho.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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