Um homem de palavra

Um homem de palavra


Um vírus desconhecido emerge do centro da terra, atacando os metais, corroendo lentamente todos os utensílios, todas  as estruturas edificadas assentes no betão.


Tal como o ser humano, também as civilizações temem o fim e elaboram sobre o prazo de validade. Do Antigo Testamento às expedições a Marte, com calamidades naturais, guerras, fomes, pestes, invasões, com tudo isso a humanidade se defronta desde que deu conta de si própria. A arte é fértil, tornando-se o imaginário pós-apocalíptico uma categoria como qualquer outra, nas suas variantes. E a BD não fica atrás, destacando-se no campo franco-belga as séries Simon du Fleuve, criada em 1973 por Claude Auclair (1943-1990), e Jeremiah, de Hermann, em curso de publicação, ambas tendo por base um cenário pós-catástrofe, consequência de guerras nucleares ou conflitos étnicos generalizados.

Le Convoyeur é uma nova série do género, com argumento de Tristan Roulot (Rennes, 1975) e Dimitri Armand (Orleães, 1985), tendo a sua estreia, em abril deste ano, coincidido em cheio com o início do pânico sentido em boa parte da Europa provocado pela covid-19, uma curiosa coincidência.

Um vírus desconhecido emerge do centro da terra, atacando os metais, corroendo lentamente todos os utensílios, todas as estruturas edificadas assentes no betão. Com este recurso agora escasso, os homens têm de readaptar-se, regressando ao couro e à madeira. De pé ficaram apenas as estruturas que vinham do Antigo Regime, os castelos, as fortificações. Mas este vírus interfere também no metabolismo, originando terríveis anomalias e mutações, atingindo elevada percentagem da população. Neste primeiro tomo, intitulado Nymphe, percebemos a pulverização populacional num cenário medieval de paliçadas e castelos coexistindo com vestígios de ruínas da modernidade: carcaças de automóveis, edifícios meio desabados. O poder exerce-se em bandos, havendo ainda uma poderosa organização sacerdotal cujos contornos não surgem ainda bem definidos neste episódio inicial. Sabe-se apenas que percorrem as comunidades, fortemente armados, à caça de crianças sãs e dos progenitores, capturando-os para futura reprodução de indivíduos saudáveis – a única possibilidade de salvar a humanidade, a procriar seres repelentes (a bela Ninfa, metade mulher, metade aranha é um deles) ou tornada estéril. Na floresta, elemento sempre misterioso e inacessível, vivem predadores cegos, espécie de dinoprimatas da mata, chacinando tudo o que se aproxima da fímbria do seu território.

E o herói, no meio disto tudo? O Convoyeur (o distribuidor) é um solitário façanhudo que aceita todas as missões que lhe são confiadas, aparentemente sem grandes dilemas morais. “A minha palavra é a minha lei”, diz para consigo. Em troca, o contratante compromete-se a engolir um peculiar ovo que aquele lhe oferece… Porquê, não sabemos; não é difícil ver naquele alimento um símbolo de renascimento. Mas respostas para estas e outras interrogações só nos álbuns seguintes.

Le Convoyeur – tomo 1 – Nymphe
Argumento Tristan Roulot

Desenho Dimitri Armand

Edição Le Lombard, Bruxelas, 2020

Argumento Le Lombard, Bruxelas, 2020

BDTECA

Mulher-Borboleta Greg é um malsucedido autor de autoficção. O editor propõe-lhe a criação de um super-herói diferente, que as minorias possam apreciar. É assim que surge a mulher-borboleta: uma empregada de limpeza negra num laboratório de física esconde-se, para fugir ao assédio de um cientista, num acelerador de partículas no preciso momento em que uma borboleta lhe pousa no ombro. Nasce assim a Butterfly-Woman, inimiga dos fascistas, dos racistas, dos machistas, numa homenagem paródica ao universo dos super-heróis. 

Raparigas e marinheiros Vamos sempre dar a um porto e aos seus bordéis. Depois de O Porto Proibido (Il Porto Proibito, 2015), a sequela parece que foi publicada primeiro em França, pela Glénat: Les Filles des Marins Perdus, cada uma cada noite, num alcouce de Plymouth, contando a sua história. Pelo casal Teresa Radice e Stefano Turconi, também autores Disney italianos (Pippo, Topolino, Zio Paperone – ou seja, Pateta, Mickey, Tio Patinhas), num movimento do infantojuvenil para o adulto, contrário ao de Cosey, autor do poético Johantan, que não se coibiu de desenhar, por exemplo, a Minnie, como já aqui falámos.

Stumptown Uma detetive chamada Dex Parios, dona da Stumptown Investigations, é também uma dependente do jogo e, lésbica, sorte ao amor ver-se-á. Nomeada para um Prémio Eisner, foi adaptada a série televisiva. O título do primeiro tomo é magnífico, O caso da rapariga que levou o champô mas deixou o carro, de Greg Rucka e Matthew Southworth, edição G-Floy, 2020.