Um homem que passa

Um homem que passa


 Duas gerações diferentes, ele um abencerragem dos libertinos anos 60 e 70, ela jovem mulher do tempo do #mee too, o caldo não tardará a entornar-se.


Paul Berthier é um foto-repórter de nomeada. Em “Terra” (assim mesmo, em português), a sua grande obra editada em livro, o sublime das paisagens exóticas vive paredes meias com a miséria e os regimes que atropelam os direitos humanos. Às portas de velhice, e atormentado por um aneurisma cerebral, o seu propósito é o de organizar um álbum de fotografias de pendor erótico, de mulheres com quem manteve relações íntimas, umas horas ou uns anos, não muitos, uma vez que Paul é um homem que não procura criar raízes, é um homem que passa pela vida das mulheres.

A acção decorre no arquipélago de Chausey, no Canal da Mancha – Paul tem aí o refúgio, numa pequena casa que herdara dos avós –, e desencadeia-se quando, num paroxismo de desespero, o pavor de ficar meio inutilizado em consequência da doença, como sucedera ao pai, empreende o caminho para a costa para se suicidar. Mas um sinal luminoso a estralejar, indício de naufrágio, trava o intento. Conhecendo os rochedos como a palma da mão, arranca numa lancha em direcção ao pequeno veleiro em risco de se desfazer de encontro às rochas. A bordo está Kirsten, assistente editorial na casa que o publica, que se dirigira à ilha, sem avisar, para acertar pormenores.

Recuperada e enxuta já no acolhedor chalé, vendo as fotografias de inúmeras mulheres dispostas nas paredes, pede-lhe que fale sobre o projecto, o mesmo é dizer que lhe conte a sua história. Duas gerações diferentes, ele um abencerragem dos libertinos anos 60 e 70, ela jovem mulher do tempo do #mee too, o caldo não tardará a entornar-se; Kirsten a acusá-lo de ser um predador exibindo troféus de caça, o que Paul nega com veemência; pelo contrário, apreciando as mulheres e o prazer mútuo que uma relação suscitava, apenas estava atento aos sinais, tendo a experiência ensinado que quando um homem aborda uma mulher, se esta não tiver já reparado em si com agrado, dali não levará nada… Quando a dinâmica do diálogo precipita a acção, ficamos a saber que Kirsten não é apenas a publisher que se lhe apresentou, mas alguém com ligações ao passado.

Se o argumento cumpre (de Denis Lapière, Namur, 1958) abeirando-se perigosamente de alguns clichés, o maior interesse reside no trabalho de Dany (Daniel Herontin, Marche-en-Famenne, 1943), um dos últimos grandes nomes da idade de ouro da revista Tintin. As pranchas iniciais, as da tempestade sobre a ilha, são magníficas, as analepses distinguem-se do tempo presente através do recurso à aguarela e as expressões, numa BD que assenta sobretudo em diálogos de forte tensão, são bem logradas.

Dany sempre foi um pouco narciso: Olivier Rameau, protagonista da série que criou com Greg, assemelha-se ao autor quando jovem, e a bela Colombe Tiredaile teve por modelo Marcy, sua mulher. Colombe, mesmo nos parâmetros mais rígidos da imprensa da época foi sempre uma figura sexuada, que se vai erotizando à medida que o tempo o permite. Por isso, quando da série de gags eróticos Ça Vous Interèsse? – que deu a Dany uma aura de homme à femmes, apesar de casado com a mulher que ama há mais de 50 anos, como fez questão de frisar numa entrevista a propósito deste álbum –, ninguém se admirou que a imagem decalcada de Colombe também por lá aparecesse. Há quem veja em Paul um seu auto-retrato físico, no que o desenhador só concorda parcialmente. A verdade é que Lapière destinou o argumento a Dany e a mais ninguém; e, mutatis mutandis, a evocação de Colombe, isto é da mulher, Marcy, continua neste álbum. No fundo, diga-se o que disser, Dany é um homem que fica.

Baby Blues. Série criada em 1990 por Jerry Scott e Rick Kirkman, explora as situações de comicidade dentro de uma família de classe média americana: um casal, os três filhos e toda a humanidade que gira em volta de um lar: avós, parentes, vizinhos, professores, o pediatra… O habitat familiar foi sempre um recurso inesgotável para muitos autores, mesmo quando não está no centro da própria série, como é o caso dessa obra-prima de Bill Watterson, Calvin and Hobbes: lembremos Hi & Lois (Zezé, na versão brasileira), de Mort Walker (Recruta Zero) e Dick Brown (Hagar, o Horrível), até outra série excepcional que a Gradiva editou há amos, mas que infelizmente não vingou, A Balada da Máquina de Lavar, de Lynn Johnston. (Corram à procura!…) O gosto pelas tiras continua. Baby Blues #37 — Vá para Fora Cá Dentro, edição Bizâncio, Lisboa, 2020.

Un Homme qui Passe. 

Texto: Denis lapière

Desenho Dany

Editora Dupuis, Marcinelle, 2020

 

BDTECA

Baby Blues. Série criada em 1990 por Jerry Scott e Rick Kirkman, explora as situações de comicidade dentro de uma família de classe média americana: um casal, os três filhos e toda a humanidade que gira em volta de um lar: avós, parentes, vizinhos, professores, o pediatra… O habitat familiar foi sempre um recurso inesgotável para muitos autores, mesmo quando não está no centro da própria série, como é o caso dessa obra-prima de Bill Watterson, Calvin and Hobbes: lembremos Hi & Lois (Zezé, na versão brasileira), de Mort Walker (Recruta Zero) e Dick Brown (Hagar, o Horrível), até outra série excepcional que a Gradiva editou há amos, mas que infelizmente não vingou, A Balada da Máquina de Lavar, de Lynn Johnston. (Corram à procura!…) O gosto pelas tiras continua. Baby Blues #37 — Vá para Fora Cá Dentro, edição Bizâncio, Lisboa, 2020.
 
“Petite histoire”. A história episódica, a conjuntura, os factos, foram durante muito tempo desprezados pela historiografia, após, durante séculos serem sobrevalorizados. A verdade é que a História nunca se fez sem homens e nunca deixou de ser determinada por factos individuais, por muito que pesem as estruturas, de Júlio César a Napoleão. O volume I de Estórias da História, contadas por Jorge Magalhães e ilustradas por Jorge Trigo, não sendo um livro de BD, é uma obra de dois dos nomes mais importantes dos quadradinhos portugueses do século passado, e por isso o seu aparecimento deve ser assinalado, inaugurando, aliás, a “Colecção JM”, justa homenagem ao argumentista e editor esclarecido. Edição Ala dos Livros, Estoril, 2020.