Do Extremo Oriente à Europa, o vírus foi mais rápido a chegar que as pulgas no lombo dos ratos da Peste Negra. Em Itália, caixões amontoados, médicos e enfermeiros esgotados; logo depois, a Espanha, razia nos lares; por cá, toda a gente em casa ainda antes de o Governo mandar. Só foi bom para os cães, nunca antes tão passeados; havia quem os tivesse para alugar àqueles que legalmente queriam desconfinar sem ter a polícia à perna.
Pelas páginas de A Batalha, “jornal de expressão anarquista” fundado há um século, chega-nos um encarte para dobrar e montar com uma BD de Max (Barcelona, 1956), um do nomes mais destacados da BD espanhola, desde os tempos do fanzine underground fotocopiado ao reconhecimento do poder, atribuindo-lhe o primeiro Premio Nacional del Cómic, em 2007. Um luxo, portanto.
Desgastado, à terceira semana, o autor amarrou a paciência diante da televisão e dos conteúdos gratuitos da internet e apresentou um panfleto e catarse sobre o efeito que estes dias desgraçados tiveram sobre si, desabafo “escrito depressa e mal em abril de 2020, durante o Confinamento”.
Manifestamente Anormal transmite-nos toda a fúria de uma personagem que se supõe ser alter ego de Max, e ninguém escapa: a começar pelo rei até aos reles concidadãos que deixavam bilhetes à porta da casa do vizinho profissional de saúde, para que se pusesse ao largo depois de vir do trabalho onde arriscava a vida para salvar as dos outros; ou ainda os prestimosos denunciantes de varanda que, após palminhas dirigidas aos heroicos médicos e enfermeiros (que certamente viviam noutro prédio), telefonavam à polícia apontando este e aquele que andavam na rua ilegalmente. Manifesto desapiedado contra a anormalidade do tempo pandémico, cáustico e vociferante com os que se iam esquecendo de ser pessoas para se transformarem em bichos acossados pelo medo.
O desenho minimalista é de grande eficácia e a “mensagem” acerta em cheio no alvo: nós, os confinantes até nova ordem de soltura, enchendo-nos de doestos e pontapés no traseiro, para que não nos esqueçamos de que estar engaiolado é mais próprio de animais de capoeira.
Mas como a liberdade dos outros é, pelo menos, tão preciosa quanto a nossa – em especial, a liberdade de poder andar livremente na rua sem que um desmascarado inconsciente nos faça a doação das suas gotículas, enviando-nos diretamente para o cemitério –, que fazer?, perguntamos.
O nosso herói, esgotado de tanto vociferar, fica-se desapontado pelo alvéolo que lhe serve de habitação e adormece.
Manifestamente Anormal
Texto Max
Desenho Max
Editora Encarte de A Batalha #288-289
Lisboa, Centro de Estudos Libertários, mar/jun 2020
BDTECA
Errância Théo é um jovem marinheiro do porta-helicópteros Jeanne d’Arc, com a paixão do mar e o apelo da viagem. R97 é o registo da embarcação, mas os habitantes de Brest, onde se situa a base naval que o acolhe, chamam-lhe La Jeanne. O grumete foi influenciado pela leitura de Robert Louis Stevenson, Herman Melville e Joseph Conrad, e anseia por vencer os oceanos, atingir outros portos, outros cheiros, outras cores. Mas o próprio navio é um microcosmos em si. Daí o título principal deste romance gráfico editado na coleção Air Libre da Dupuis, com texto de Bernard Giraudeaux e desenhos de Christian Cailleaux: R97 – Les Hommes de la Terre, Marcinelle, 2020.
Armadilha no Mar Vermelho Escritora e jornalista inglesa, Renée Stone desloca-se à Etiópia em outubro de 1930 para fazer a reportagem da coroação do imperador Hailé Selassié. Na velha Abissínia conhecerá um arqueólogo, John Mallowan, tão voluntarioso quanto desajeitado, formando com ele um duo demasiado curioso e original para passar incólume num mundo à beira da extinção, pelos interesses contraditórios das grandes potências. No segundo tomo, com texto de Julie Birmant e desenhos de Clément Oubrerie, uma tabuinha de argila com inscrições do rei assírio Assurbanípal, detentor da maior biblioteca da antiga Mesopotâmia, leva-nos à velha Nínive. Edição Dargaud, Paris, 2020.