Mário Coelho, famoso toureiro português, faleceu ontem, aos 84 anos, vítima de covid-19, no Hospital de Vila Franca de Xira, onde estava internado, desde o final do mês passado.
O Farpas Blogue explica que Mário Coelho tinha estado num almoço com amigos no Clube Náutico de Paço D’Arcos a 13 de junho, “para comemorar o desconfinamento”. E depois dessa altura o seu estado de saúde piorou. Começou a ter problemas respiratórios mas recusou ser internado. A 26 de junho, um agravamento do estado de saúde levou-o a fazer o teste da covid-19. Deu positivo e foi internado de seguida. Na última semana passou para a Unidade de Cuidados Intensivos e esteve até ligado ao ventilador. Não resistiu à doença.
A Associação Nacional de Toureiros lamentou a morte de um dos seus. “Figura incontornável da tauromaquia mundial, com um percurso ímpar que ficará para sempre perpetuado na nossa história. Um Homem e um Toureiro com uma forte personalidade, onde o romantismo e glamour eram características bem vincadas. A cultura portuguesa, a tauromaquia e sobretudo o toureio a pé ficam mais pobres, mas os Maestros não morrem, passam sim para outra dimensão”.
Natural de Vila Franca de Xira, foi homenageado em outubro do ano passado com uma estátua na sua terra natal, onde era muito acarinhado e onde tinha também uma Casa-museu. Foi um dos toureiros portugueses mais conhecidos e era com orgulho que falava da sua profissão, que começou ainda muito jovem. A sua carreira levou-o aos quatro cantos do mundo e foi amigo e até confidente de inúmeras figuras célebres do século XX, como Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Orson Welles, Audrey Hepburn ou Ava Gardner.
O “maestro”, como era tratado, deixa aos 84 anos esta vida cheia de histórias para contar. Era casado com Maria Helena Guerra e tinha um filho, Mário Vizeu Coelho, do seu primeiro casamento, com a filha do primeiro matador português Diamantino Vizeu, Verónica.
Deu uma das suas últimas entrevistas, ao i, em maio do ano passado. O orgulho com que falava da sua profissão e do seu percurso, que começou ainda em criança, era notório.
A vida fora de Portugal começou muito cedo. “Começo como praticante a bandarilheiro logo em 1956, em Espanha. E aí vejo a diferença entre o ambiente de lá e o nosso. Lá tocava-me muito mais, havia mais emoção”, dizia ao i.
Começou a destacar-se lá fora e a receber convites. Foi aí que conheceu Pablo Picasso. “Estávamos no mesmo hotel, íamos ao bar do hotel, eu convivia com os toureiros todos. E então cumprimentei-o no bar. Da parte da tarde houve corrida e fui bandarilhar. Picasso estava na barreira e nós cá dentro junto à teia. Quando regressámos houve uma ovação. Viemos para a teia e ele chamou-nos. Deu-me um bilhete que havia em França, que eram alongados, e, nas costas do bilhete, fez uma figura de um bandarilheiro a pôr um par de bandarilhas. Ele fez o desenho durante a corrida”, disse ao i com orgulho. E essa foi a primeira de muitas vezes que conviveu com Picasso. “Ele era um homem de grande temperamento. Uma personalidade forte. Como é que um homem pode estar calmo e em dois ou três segundos põe-se na máxima temperatura, agressivo até? Parecia um touro. Estive mais duas ou três vezes com ele e a última vez foi quando ele fez 80 anos. Vi-o já completamente diferente, um homem abatido fisicamente”, lembrou na ocasião.
Mas as histórias de uma vida não ficam por aqui. Foi também numa corrida de touros em Alcalá de Henares que conheceu Ava Gardner. Mas aí, apesar da troca de olhares, não se falaram. Voltou a encontrá-la mais tarde numa receção na embaixada dos Estados Unidos em Madrid. “Fui buscar uma bebida e sentei-me ao lado dela. Estivemos ali muitas horas. E depois começámos a sair. Ela não gostava do sol, o dia para ela era um inferno. Era feliz de noite”, lembrou. Nasceu então uma amizade. “Fazíamos umas corridinhas em volta do estádio Chamartín às duas, três da manhã. Tinha coisas fantásticas. Aquela mulher nunca foi feliz verdadeiramente”. Lembra a grande amizade entre os dois. Mas depois Ava Gardner foi viver para Londres e não contactaram durante muitos anos. Falaram uma vez ao telefone, quando ela lhe disse que já não podia andar. Mas não voltou a vê-la. E foi pelos jornais que soube que tinha morrido.
Foi também a profissão de toureiro que o levou a cruzar caminho com Ernest Hemingway. A amizade cresceu durante uma viagem e dizia haver uma frase que nunca esqueceria: “Metemo-nos no carro e foi quando ele teve essa frase: ‘Como é que esta gente não entende que eu só escrevo quando tenho talento, quando tenho vontade de escrever? Isto não pode ser assim como eles querem’. E passado uns minutos disse-me: ‘Eu dava tudo para pôr um par de bandarilhas como tu’, e eu disse-lhe o que me veio à cabeça: ‘E eu dava tudo para escrever uma página como o senhor escreve’”.
A entrevista dada ao i continua com histórias sobre as pessoas que conheceu durante o seu percurso. Segue-se Orson Welles, com quem comeu, bebeu e se divertiu. “O Orson Welles era um estudioso e gostava de ter sido picador de touros”, lembra.
Audrey Hepburn fez também parte do seu percurso. Descreveu-a como “uma mulher bonita. Uma senhora. Era baronesa. De uma educação extrema, uma sensibilidade fantástica. De uma educação que aquilo parecia cristal. A conversação dela embebia-nos. Era uma mulher muito doce, de palavras doces e uma elegância fantástica. Eu conheci-a bem”.
Profissão que terminou aos 54 anos O ‘maestro’ era conhecido como um dos melhores bandarilheiros do mundo e a justificação para o sucesso era fácil: “Eu era um descarado”, lembrou.
Foi colhido várias vezes e teve graves lesões. “Tive a femoral partida. Tenho uma veia femoral em plástico, o pulmão perfurado, os intestinos perfurados e uma perna furada em três lados de lado a lado”. Mas olhando para ele, alto, esguio, ninguém diria. “Isto é tudo mental. O valor, a valentia, a coragem. Nós não empregamos coragem, empregamos sempre o valor, que é chegar a um momento da nossa vida e pensar num toureiro que tem duas coisas suas: a cabeça e o coração. O restante corpo é plástico e pertence ao touro”, dizia ao i.
Matou centenas de toiros e terminou a carreira em 1990, um momento que dizia nunca esquecer. “Senti um mar de emoções. Preparei a minha despedida dois anos antes. Tive uma corrida que me roubou faculdades na perna esquerda. Nos últimos anos toureava baseando-me só numa perna”, confessou ao i.
Nesse dia, chorou. “Queria ir despedir-me e que as pessoas ficassem com uma imagem bonita desse dia e tivessem respeito por mim como tive sempre pelo público. Foi o único dia em que me vieram as lágrimas aos olhos em público. Chorei algumas vezes na casa de banho, mas não em público. Chorei porque vi a Praça do Campo Pequeno coberta de lenços brancos a dizerem-me adeus e isso é uma imagem que ficará para sempre”. Tinha 54 anos.
Mário Coelho deixou a vida 30 anos depois da sua despedida mas a morte, pelo menos na arena, nunca lhe causou medo. “Digo-vos com franqueza, seria um homem extraordinariamente completo e feliz se tivesse tido uma morte na arena. Hoje, se tivesse uma oportunidade de um toiro me matar, eu deixava-o matar”.