#BlackLivesMatter é o resumo mais cru do racismo no mundo. Quase 72 anos depois da Declaração dos Direitos Humanos, ainda fazemos os mesmos apelos ao respeito pela dignidade humana que serviram as campanhas contra a escravatura. Bastou um vídeo para mostrar ao mundo um fragmento da realidade da população negra nos Estados Unidos e todos foram obrigados a encarar de frente o que sempre esteve lá. Todas as ilusões sobre o que representou a eleição de Barack Obama sucumbiram à súplica de um homem negro sufocado pelo joelho de um polícia norte-americano: “I can’t breathe”.
A reação popular não se fez esperar e foi mundial. Não é difícil colocar aquelas imagens, aquela situação, noutros países, noutros bairros, noutros continentes. A Netflix foi uma das muitas plataformas que, ao recusar a cumplicidade, listou outros nomes para lembrar que o problema não é só norte-americano. No Brasil, João Pedro, uma criança de 14 anos que morreu baleada dentro de casa pela Polícia Militar. Em Portugal, Cláudia Simões, Celso Lopes, Bruno Lopes, Rui Moniz, Jailza e Neusa. A ambas as listas foi acrescentado o nome de George Floyd, todos vítimas negras de violência policial nos seus países.
Outra coisa que todos têm em comum é o facto de serem pobres ou viverem em bairros pobres, bairros onde o escrutínio das sociedades democráticas sobre a atuação da polícia é muito menos exigente. A justiça que milhões de pessoas pedem para George Floyd é muitas vezes substituída pela condenação social imediata dos moradores desses bairros sempre que surge um problema, prova de que não é só entre as forças policiais que existe racismo.
Basta comparar esta mobilização mundial contra o racismo com a reação à existência de novos focos de contágio de covid-19 em bairros degradados na periferia de Lisboa. Um dos bairros degradados recentemente identificado pelo aumento do número de casos foi o “Vale de Chícharos”, também chamado Bairro da Jamaica, no Seixal – por coincidência, o bairro que foi considerado prioridade número um para realojamento devido às condições subumanas em que se encontram os seus moradores há mais de 30 anos.
O paciente zero desse bairro terá sido um operário da construção civil infetado no trabalho. À semelhança de outros, esse doente deve ter contagiado pessoas com quem vive, com quem trabalha ou partilha transportes. À semelhança de tantos bairros, existem no Jamaica grupos de pessoas que se concentram ao pé dos cafés e ao ar livre. À semelhança de outros focos, cabia às autoridades de saúde tomar as medidas necessárias para proteger a saúde das pessoas e travar o contágio.
Mas só no Bairro da Jamaica a atuação das autoridades de saúde foi acompanhada por dezenas de agentes das Equipas de Intervenção Rápida da PSP e da Unidade Especial de Polícia, num aparato com cobertura televisiva, para fechar os cafés improvisados. Só no Jamaica uma intervenção de saúde pública serviu para intimidar os habitantes do bairro.
A desigualdade já desprotege mais estas pessoas perante a doença do quaisquer outras, gente pobre, obrigada a utilizar os transportes públicos sobrelotados para trabalhar, sem acesso a habitação digna. “Fica em casa” tem um significado muito diferente quando a casa é uma barraca, também ela sobrelotada.
Ainda mais insuportável é que a coberto do combate ao vírus, objetivo que apela à solidariedade nacional, se promova a condenação gratuita de comunidades pobres onde vivem os trabalhadores e trabalhadoras precárias que ajudam a construir e limpam as habitações e empresas das nossas cidades; e o preconceito racial, como fez o presidente da Câmara da Azambuja ao distinguir entre famílias ciganas e “famílias normais como nós”.
Se somos todos George Floyd, também somos todos Jamaica, também somos todos Quinta da Mina.
Deputada do Bloco de Esquerda