Um homem escalavrado

Um homem escalavrado


A leitura é também um processo físico, e nada substitui o prazer de ter um livro nas mãos e folheá-lo, nem sequer as revistas, que são outro tipo de regalo. Já à web, com todas as vantagens quanto à disseminação de material, falta-lhe o vinco da matéria impressa, o cheiro a papel e a tinta, se…


Um álbum em formato clássico de BD franco-belga, produzido na origem, com a chancela portuguesa da Arte de Autor, dá-nos aquela boa sensação. E com a pandemia, as opções têm sido escassas…

Comecemos pela capa, ampla, imagem aberta e essencial como o cenário de que se compõe: o Colorado nos finais da década de 1860, um território que não ascendera ainda à dignidade estadual e cujo nome tipifica o lugar-comum do Oeste selvagem, de terras sem lei nem ordem. Os áridos maciços pedregosos das Montanhas Rochosas, cujo tom terroso e barrento contrasta com a chapada de azul-celeste, impõem-se à imagem do cowboy e montada, postados à direita, em primeiro plano. Enquanto no canto superior esquerdo, entre o nome dos autores, Hermann e Yves H., e o título deste episódio – A Última Vez que Rezei –, o lettering que compõe o nome-alcunha do protagonista, Duke, apresenta os carateres gastos, corrompidos, um borrão com salpicos de tinta caindo da letra inicial, como se de um esguicho de sangue negro se tratasse, transmitindo a condição do herói, a de um homem escalavrado, como a paisagem que percorre com o olhar. Hermann a anunciar a mestria do desenho, os fundos aguarelados, a eficácia dos enquadramentos.

Neste quarto­ álbum, Duke, que vinha descobrindo-se pistoleiro contra a própria vontade, parece ter-se rendido ao fatum nefasto que o assombra, vindo dos tempos remotos duma infância que vamos entrevendo pelas informações que o texto nos vai dando. Através de diálogos evocativos ou recurso ao flashback, revela uma orfandade precoce que não foi acomodada da melhor maneira. Nas palavras do protagonista: “Abandonados por Deus, era inevitável que o Diabo se interessasse por nós…” O passado é algo de que não se pode fugir.

O modo de desvelamento, que o argumentista, Yves H., vai soltando com eficácia, ocorre à medida das muitas peripécias de que o álbum está recheado: perseguição infrene (há um cofre recheado que foi objeto de um assalto no álbum anterior, de que já aqui se falou), o rapto de Peg, a prostituta que é o amor adiado de Duke, a sua captura, um espetro que o persegue espalhando a morte em redor, mas poupando-o sempre. Em suma, uma sucessão de ações violentas em que Duke é quase sempre um agente passivo, em resposta defensiva. Até quando?

Atentemos nos nomes dos quatro álbuns: A Lama e o Sangue, Aquele que Mata, Sou Uma Sombra e A Última Vez que Rezei. O título do quinto tomo, em que Hermann está a trabalhar em bom ritmo, já se conhece – Serás Um Pistoleiro – e poderá responder àquela pergunta.

Bdteca

Mais jornalistas

A BD está cheia de jornalistas que raramente escrevem e normalmente se metem em alhadas – de Tintim e Fantásio a Ric Hochet, passando por Clark Kent. Jacques Gipar é um deles. No oitavo tomo das suas aventuras, em tempo de Guerra Fria, Gipar imiscui-se nos meandros da sociedade russa de Paris, cidade favorita de refúgio para os russos brancos, após a Revolução de 1917, mas pejada de outros, bem vermelhos. Texto de Thierry Dubois, desenhos de Jean-Luc Delvaux, numa BD muito tributária, no bom sentido, da Escola de Marcinelle. Lécho de la Taïga, edição Paquet.

 

Patinhas

A história do Tio Patinhas, criação extraordinária de Carl Barks, inspirada na personagem de Dickens Ebenezer Scrooge, foi contada como ninguém por Don Rosa. Agora, os estúdios italianos oferecem as origens da fortuna do “Zio Paperone” relatadas por ele mesmo. Reunido com a família na quinta da Vovó Donalda, Patinhas conta a história de cada um dos seus milhões, esses a que os Metralhas desesperam por deitar a mão, a salvo na famosa caixa-forte de Patópolis… Todos os Milhões do Tio Patinhas, texto de Fausto Vitaliano e desenhos de Paolo Mottura, Stefano Intini, Giampaolo Soldati, Paolo De Lorenzi, Giuseppe Della Santa, Lorenzo Pastrovicchio e Marco Palazzi. Editado entre nós em 2015, pela Goody, conhece agora uma nova edição da Panini, em português do Brasil.