Um novo contrato social

Um novo contrato social


Não podemos deixar que o Governo, com base nos estados de emergência ou de calamidade, possa atropelar direitos fundamentais para combater as consequências desta pandemia.


A crise da covid-19 desafiou as nossas instituições e o nosso modo de vida de uma forma como há muito não víamos. Cidades vibrantes e acolhedoras ficaram em silêncio e vazias. Pessoas normalmente amigáveis e sociáveis evitam-se, como se tivessem medo umas das outras.

Esta pandemia tem destacado vulnerabilidades evidentes quer ao nível social e económico, quer ao nível da organização do Estado.

Estes são momentos inéditos que serão suportados por todos nós, mas principalmente pelas pessoas mais frágeis, com empregos precários, e por empresas mais frágeis, com estruturas mais débeis.

Perspetiva-se uma enorme perda de empregos que vai criar uma necessidade imediata de apoio social, com dois caminhos. O primeiro é o que permite prevenir dificuldades para os desempregados e o segundo é o caminho que permite uma rápida revitalização da economia.

Os impactos sociais e económicos serão mais duros do que prevemos e talvez seja tempo de debater a hipótese de um novo contrato social que ofereça uma rede de segurança mais eficaz e mais robusta aos portugueses. É preciso debater sem medo de deixar cair tabus ideológicos impostos, da direita à esquerda.

Podemos não ser capazes de desafiar as leis do mercado e de aumentar os salários para os empregos com recursos mais baixos, ou de melhorar os mecanismos de apoio social do Estado por forma que a equidade substitua a igualdade, mas temos obrigação de reinventar o futuro.

Os mais vulneráveis precisam de um Estado social-democrata (de facto) que lhes garanta a segurança mínima para que possam ter acesso a cuidados de saúde e educação de alta qualidade para os seus filhos e a possibilidade de ter os bens de primeira necessidade ao seu alcance.

Numa fase de crise, como esta, temos de preparar-nos para o pós-crise e, nessa circunstância, nenhum português deve ser deixado indefeso, seja contra crises de saúde pública, seja contra crises sistémicas ou até infortúnios individuais.

Agora, muitos gritam pela obrigação da intervenção do Estado e pela substituição de todos os suportes existentes pela grande mão do Estado. Mas, curiosamente, esses mesmos que hoje gritam pela ajuda do Estado defendiam, ainda há pouco tempo, que deveria ser a iniciativa privada a reinventar o modelo de criação coletiva de valor e riqueza, longe das amarras do “tirano” Estado.

A ideia de repensar o modelo de contrato social, no sentido de incorporar novas realidades, deve levar-nos a reavaliar o papel do Estado e a nossa relação com ele, sem recurso a dogmas predefinidos por um statu quo que nada quer mudar.

Porém, não podemos ser ingénuos e deixar que o Governo, com base nos regulamentos impostos pelos estados de emergência ou de calamidade, possa atropelar direitos fundamentais que em nada contribuam (através desse atropelo) para combater as consequências desta pandemia.

Não podemos permitir que um Governo que, por contingências do combate à covid-19, teve de ultrapassar algumas linhas vermelhas possa pensar ou habituar-se a violar essas mesmas linhas vermelhas em tempos normais.

Temos de estar alerta e acreditar nas instituições, nomeadamente no Presidente da República e no Parlamento, a quem compete fiscalizar a ação do Governo e corporizar uma alternativa, sempre necessária em democracia.

Mas o que definitivamente não podemos é ser aquele filho (cidadão) que, desejando ardentemente a independência e contestando a vida que tem de “comida, cama e roupa lavada”, sai de casa, deixa de cumprir as regras que toda a família cumpre e parte para a sua vida privada, mas, assim que surge um problema, uma crise ou um acidente, esquece tudo o que defendia e vem reclamar a obrigação perpétua dos pais (Estado) de ajudarem o mimado e imaturo filho.

Temos de procurar na adversidade deste momento uma janela de oportunidade para evoluir, para aceitar discutir novos conceitos que melhorem a relação entre os cidadãos e o Estado e, acima de tudo, para ajudar a aumentar a confiança e a participação dos portugueses na construção do seu futuro e na governação de Portugal.

Como disse Winston Churchill, “nunca devemos desperdiçar uma boa crise”. E, já que esta nos bateu à porta, então que possamos dela extrair a mudança necessária para garantir o futuro dos nossos filhos.

Gestor e mestre em Ciência Política