A pandemia, no regresso de alguns


Hoje, alguns regressam ao novo normal quando, ao invés do que é dito, pontuam exemplos de pouco civismo, nenhum senso e imensa inconsistência.


Desiguais na normalidade de outrora, desiguais no estado de emergência, desiguais na situação de calamidade, eufemismo para a certeza possível no meio de tantas dúvidas passadas, presentes e futuras. Hoje, alguns regressam ao novo normal quando, ao invés do que é dito, pontuam exemplos de pouco civismo, nenhum senso e imensa inconsistência. O confinamento, voluntário e imposto pelo estado de emergência, conseguiu o efeito pretendido de aplanar a curva para acolher a debilidade da resposta do Serviço Nacional de Saúde, depauperado de anos e desligado das tendências orçamentais, demográficas e sociais. Houve muitos a cumprir, demasiados a contornar e a escapulir-se.

Portugal tem um problema com as rotinas. As rotinas de antevisão do risco, das conjunturas e das tendências. Dá-se mais atenção ao quotidiano e às clientelas de poder, de interesse e geográficas, do que à geração de rotinas para as probabilidades. Como se pode esperar que saibamos agir em emergência se não incorporamos o risco nas nossas vidas, se não treinamos a convergência de vontades e se não temos os meios em que vivemos preparados com planos B? Não planear e treinar em tempo normal significa não estar preparado para a emergência. Não estou com isto a dizer que tínhamos de estar preparados para a pandemia de covid-19, mas tínhamos de ter noção das rotinas de informação, de articulação, de sobrevivência e de resposta. Aliás, das perguntas mais ridículas que se ouvem é “estamos preparados?”. Como se o jornalista que a coloca estivesse preparado para o que se abate, agora a passo acelerado, sobre os média em Portugal. Estará preparado para outros constrangimentos ou para o desemprego? E, no entanto, há anos que há menos pessoas a comprar jornais, menos telespetadores e menos ouvintes. As tendências são previsíveis, os riscos existem, as necessidades estão identificadas, mas há sempre alguém que resiste à mudança ou às mudanças que se impõem. Há anos que a curva demográfica indica a necessidade de acautelar o envelhecimento da população, mas a “moda” foi construir novos centros escolares, que mais cedo do que tarde serão convertidos em equipamentos para a população sénior.

Portugal tem um problema com a organização. Estamos desfasados das realidades. A realidade é dinâmica, interligada e posicionada no tempo, e a organização é estática, assente em compartimentos e espaços estanques, como se continuassem a existir fronteiras. Como não há rotinas de colaboração, de proximidade e de monitorização das dinâmicas das comunidades, dos Estados, dos continentes e do mundo, ficámos expostos aos elementos. Neste caso, à contaminação global pelo vírus. Entre a inexistência de regiões e o desmantelamento dos governos civis, pela mão dos governos PSD/CDS, em deriva populista-irresponsável, ficou evidente que perante a necessidade de uma resposta de proximidade supramunicipal, com mobilização de entidades desconcentradas da administração central, o nível de coordenação e de ação no terreno eram insuficientes. Teve o Governo de remendar com o destaque de alguns dos seus membros para acompanhar as realidades regionais. Sem regionalização, depois da pandemia, impõe-se a existência de um representante regional do Governo que coordene os recursos do estado ao nível das NUT ii, sem estar dependente do puxar a brasa à sua sardinha local. O descalabro era tal que havia diretores regionais que nunca se tinham falado, quanto mais integrado alguma ação conjunta.

Portugal tem um problema com a consistência, a transparência e a verdade. É certo que o vírus é recente, o contágio foi avassalador e o conhecimento é ténue, mas há demasiadas situações a parecerem deslaçadas, sem consistência e sem explicação. Não teria ficado mal ter juntado à explicação do não aconselhamento das máscaras que, mesmo que fossem aconselháveis, não fazia sentido dizê-lo porque não estavam disponíveis, por não existirem no mercado. Em vez de proclamações de infalibilidade dos recursos, não teria ficado mal reconhecer que existiam falhas, mas que se estava a trabalhar para as superar. E o mesmo com os testes, as solicitações locais e tantos outros episódios em que tem de haver sempre mais explicação e mais transparência. Para o bem e para o mal, o tempo atual e digital é também isso. A necessidade de ir mais além no exercício político, porque não ir significa sempre um gato escondido com o rabo de fora. E com os recursos nas redes é o diabo, porque tudo ou quase tudo se sabe.

Hoje é o regresso de alguns. Tenho dúvidas se não deveria ser daqui a 15 dias. Desde que as respostas para a economia funcionassem e não houvesse, como sei que existem, empresas que submeteram pedidos de layoff a 30 de março e ainda não obtiveram resposta da Segurança Social. Podia ser mais tarde, desde que os anúncios já tivessem tido tradução na realidade desesperada de quem entrou em modo de suspensão, por via do confinamento estratégico quase generalizado. Quase universalizado porque, além das exceções aceitáveis, os decisores resolveram gerar discriminações positivas para afagar as clientelas a 1 de maio, que se somaram a todos os outros desrespeitos pela lei, pelo senso e pelo equilíbrio que significa viver em compromisso numa comunidade. Portanto, desiguais pela lei, logo quando reivindicavam mais direitos e igualdades. Um pífio exercício de poder e de mau exemplo cívico no atual quadro pandémico.

Hoje é mais um dia de reajustes e de reinvenções, porque a realidade se sobrepõe aos anúncios; de desesperos, porque os anúncios não se materializam; e de exigência cívica, porque a força das convicções nunca esmorece. Exigência cívica para continuar a modular os ritmos às necessidades da emergência, mesmo que as soluções jurídicas das orientações sejam muito duvidosas, e para continuar a configurar os meios próprios de informação, de escrutínio e de liberdade de expressão. A crucial triagem entre a perceção do que é dito e o apuramento da realidade no terreno.

Hoje é dia de regresso para alguns, de choque com a realidade para muitos.

 

NOTA FINAL

O QUINTAL É MEU. A ERS – Entidade Reguladora da Saúde está a interpelar os autarcas sobre a necessidade de os “operadores no mercado” registarem as “novas estruturas fixas destinadas ao reforço da capacidade de resposta hospitalar e à prestação de cuidados de saúde complementares”, que alguns apelidaram de hospitais de campanha. Isto é, o sistema de saúde que o regulador regulou é insuficiente, as autarquias chegam-se à frente e o burocrata de serviço no regulador quer papéis para alimentar a incompetência da sua missão.

O QUINTAL NÃO É DE NINGUÉM. O foco na covid-19 deixou muita coisa deslaçada. É preciso voltar a pôr o laço e depois mudar o que tiver de ser mudado para que não se repita.

Escreve à segunda-feira