Comemorar a liberdade em liberdade


Não está em causa que o Parlamento deva continuar a funcionar, mas a realização de um evento festivo numa altura em que nenhuma comemoração seria adequada, fosse qual fosse o evento a celebrar.


Todos os anos, a Ordem dos Advogados organiza, a 19 de Maio, no Dia de Santo Ivo, patrono dos advogados, uma cerimónia de comemoração do Dia do Advogado. Essa cerimónia constitui um momento importante para a classe, em que os advogados têm a possibilidade de confraternizar e homenagear os seus colegas com mais anos de carreira. É, por isso, uma cerimónia em que os advogados habitualmente participam com entusiasmo e que a sua ordem faz questão de organizar todos os anos.

Em 2020, no entanto, a Ordem dos Advogados decidiu não realizar essas comemorações, apesar de ter tudo preparado para que tal pudesse ocorrer. Tal deveu-se não apenas a ter considerado que a cerimónia poderia causar sérios riscos para a saúde dos participantes, especialmente dos que seriam homenageados, mas também por achar que a situação que atravessamos, talvez a mais difícil na história da advocacia em Portugal, não é um momento adequado a comemorações. Efectivamente, esta epidemia já causou vítimas mortais entre os advogados, e os mesmos estão a atravessar imensas dificuldades na sua vida profissional, com grandes perdas de rendimento em virtude do encerramento dos tribunais e da crise económica que atinge a maioria dos seus clientes. Não é, por isso, a altura para a realização de eventos festivos, devendo estes ser deixados para o momento em que esta situação seja ultrapassada, como todos esperamos que rapidamente possa acontecer.

O Parlamento deveria ter adoptado a mesma atitude em relação às comemorações do 25 de Abril, Dia da Liberdade. Não está em causa que o Parlamento deva continuar a funcionar – neste caso, até com mais justificação devido às inúmeras medidas legislativas que têm de ser adoptadas durante o estado de emergência. Está em causa a realização de um evento festivo numa altura em que nenhuma comemoração seria adequada, fosse qual fosse o evento a celebrar. Mas a celebração do Dia da Liberdade ainda parece menos adequada nesta altura em que grande parte da liberdade dos cidadãos está suspensa por decisão do Presidente da República, autorizado pelo Parlamento.

Na verdade, o decreto do Presidente da República 20-A/2020, que renova pela segunda vez o estado de emergência, suspendeu parcialmente, nos termos do seu art.o 4.o, os direitos de deslocação e fixação dos cidadãos, os direitos de propriedade e iniciativa económica privada, os direitos dos trabalhadores, o direito de deslocação internacional, os direitos de reunião e manifestação, a liberdade de culto na sua dimensão colectiva, a liberdade de aprender e ensinar e o direito à protecção de dados pessoais. Para além disso, o art.o 5.o do mesmo decreto sanciona como crime de desobediência qualquer acto de resistência activa ou passiva às ordens das autoridades.

Daqui resulta que, no dia 25 de Abril de 2020, os cidadãos portugueses não têm sequer liberdade para ir passear à rua, ir a um cinema ou a uma praia, visitar familiares próximos, ir à missa ou mesmo organizar um funeral decente para os seus entes queridos desaparecidos. Não se discute a necessidade dessas medidas, mas é evidente que das mesmas resulta uma enorme privação da liberdade dos cidadãos. E se os cidadãos portugueses estão neste momento privados da sua liberdade, não faz qualquer sentido que, este ano, o Dia da Liberdade seja comemorado pelo Parlamento.

Pela mesma razão, a Rainha de Inglaterra cancelou as comemorações dos seus 94 anos, que ocorreriam hoje, o que nunca acontecera antes, e o Presidente russo cancelou as comemorações dos 75 anos do dia da vitória sobre a Alemanha nazi, que ocorreriam a 9 de Maio. Os tempos não estão propícios a celebrações, nem os cidadãos compreenderiam que estas tivessem lugar.

Em lugar de organizar uma celebração, numa altura em que nada há para celebrar, o Parlamento deveria estar antes concentrado em tudo fazer para que o estado de emergência possa ser levantado rapidamente – isto para que o país, no próximo ano, possa verdadeiramente comemorar o Dia da Liberdade em liberdade.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990