Thomas Wolfe. Um monumento ao Sul

Thomas Wolfe. Um monumento ao Sul


Um dos nomes maiores da literatura norte-americana de inícios do século XX, Thomas Wolfe é dos escritores onde a literatura respira ao ritmo do universo. Lírico e assombroso, este volume que reune dois textos diferentes mostra o fulgor deste escritor morto precocemente.


Passou relativamente desapercebida a edição de dois textos de Thomas Wolfe, nome maior da literatura norte-americana de inícios de século XX que, em Portugal, não tem tido fortuna editorial. Com selo da Dois Dias Edições, ambos com tradução de Maria Correia – um deles, O Rapaz Perdido, já tinha sido editado pela Quasi Edições –, tanto O Rapaz Perdido como Sem Porta. Um conto sobre o Tempo e o Vagabundo, reunidos num único volume, são dois pequenos tesouros que, sob a forma de protesto, não deixam de lembrar que há vida além da monocultura da ficção – tanto aquela que corre atrás dos temas da actualidade de telejornal como a outra que, com os seus capítulos curtos e a sua pressa narrativa, se aproxima de uma má série televisiva. 

Morto prematuramente em 1938, com a idade de 38 anos, de Thomas Wolfe disse William Faulkner que foi o maior talento da sua geração – como informa, aliás, o prefácio, que peca apenas por arregimentar demasiados nomes para a causa de Wolfe, como se estes dois textos não bastassem para provar a grandeza desta escrita intensamente musical. E, de facto, este fôlego imenso, que parece chegar de Whitman, este horizonte sem fim que é aquele, também, do sul dos Estados Unidos, que faz com que o sujeito que escreve se transforme em todas as partículas do universo, faça a língua respirar ao ritmo intenso do mundo inteiro, esta musicalidade presente em todos os momentos do texto – onde a encontrar hoje, sem ser nestes tesouros que o tempo conservou?

“Agreste, amassado, desolado, belo, lírico e cheio de assombro”: é desta forma que Wolfe descreve o Sul dos Estados Unidos mas é também desta forma que poderíamos falar da escrita de Wolfe e, em particular, destes dois textos, feitos “de imagens luminosas na visão orgulhosa e ardente de uma criança”, “de uma exaltação sem nome” que só a cegueira impede de compreender que também ela torna possível o contrário, uma aguda tristeza sem palavras, uma infelicidade sem igual ou uma “desolação que nos invade no final de um dia de calor, numa grande cidade da América”. 

“Era, talvez, uma questão de estação e de luz. Pois a luz surgia e desaparecia – quando havia a luz certa, então até mesmo o tijolo e o vazio branco podiam ser maravilhosos – era demasiado difícil de expressar – e um rapaz com menos de doze anos não o conseguiria fazer. Digamos apenas que era a América, era o sul; tão familiar como a nossa carne e o nosso sangue – tão familiar como os ventos agrestes de Março – como uma garganta dorida ou um nariz pingando – barro vermelho lamacento e desolação – ou Abril, Abril e uma beleza selvagem – digamos que era tudo isto – agreste, amassado, desolado, belo, lírico e cheio de assombro – digamos que era difícil de expressar – a América, velhas paredes de tijolo, uma mercearia, e Abril – e o Sul.”

Que este momento lírico, que começa em crescendo para acabar de modo suave, onde aquilo que é familiar é, igualmente, da ordem do assombro, daquilo que nos retira as palavras, que esta respiração que parece chegar das próprias coisas tenha lugar a partir da descrição de uma mercearia – tal como o dilúvio torrencial que descreve pouco tempo depois, “como se o Mississipi tivesse rebentado, jorrando dos céus” – mostra que esta escrita consegue, ao mesmo tempo, diferentes gradações de luz e sombra mas também uma arte dos extremos. É tanto uma escrita do Outono, que, diz Wolfe, é uma “estação do regresso”, onde “os jovens sofrem no íntimo a saudade de um amor perdido” como da Primavera, “que não possuí língua, mas sim gritos”. E se ela é capaz da fúria, da “alegria até ao último trago do estômago duro”, da exaltação e da felicidade mais aguda, é também capaz da mais intensa desolação, do mais fundo vazio: 

“E nada mais se sente do que a ausência, ausência e a desolação da América, a solidão e a tristeza dos céus altos e quentes, e do entardecer caindo sobre o Ocidente Médio, atravessando as terras sufocantes, submersas pelo calor, todas as pequenas vilas, as quintas, os campos, o forno sufocante do Ohio, do Kansas, do Iowa e do Indiana, ao fim do dia, e as vozes, casuais na canícula da tarde, vozes nas pequenas estações, calmas, casuais, de algum modo esmorecendo, naquele imenso vazio e exaustão do calor, do espaços e dos imensos entristecidos e altíssimos e horríveis céus.”

O Rapaz Perdido é composto por quatro peças diferentes sob a forma de capítulos, para usarmos uma imagem vinda da música, pequenas variações à volta da morte de Grover – que é apresentado, no primeiro capítulo, a partir de um forte trabalho em torno da repetição: “Aqui está o velho Grover, quase com doze anos – aqui está a praça que nunca muda, aqui está Grover, aqui é a loja do pai, e aqui é o tempo”. Morto de febre tifóide em 1904, com doze anos, todas estas peças musicais são trabalhos de memória feitos pela mãe, pela irmã e pelo irmão mais novo de Grover. Mas talvez aquela onde a ausência atinge o seu ponto mais alto seja o último capítulo, onde o irmão mais novo de Grover – com apenas quatro anos de idade quando aquele morre – conta a ida à casa onde o irmão morreu. Tudo neste pequeno capítulo, nesta pequena variação, concorre para esta dor sem nome, esta solidão sem resgate possível: a descrição de St. Louis, com o seu calor sufocante, a sua “infelicidade paciente”, os homens de “rostos descaídos”, as mulheres “vencidas pelo cansaço, com o branco quente e intenso da mortiça luz eléctrica incindido nelas”, cidade onde alguém se “afogou e perdeu, submergindo no leito de um mar imenso e desolado”; o diálogo com a proprietária da casa, onde o silêncio nem necessitaria de ser notado por Wolfe, de tal forma ele se encontra presente. E se esse sentimento sem nome invade as ruas, os sons, as luzes, numa longa prosopopeia, o fim do capítulo é o ponto alto desse estranho sentimento onde tudo “permanecia ali como sempre fora. E tudo desaparecera, e jamais voltaria.”

“Porém, sabia que não poderiam voltar – o grito da ausência da tarde, a casa que nos espera e a criança que sonhava; e, atravessando a espessura da memória dos homens, do bosque encantado, os olhos escuros e o rosto calmo – pobre criança, estranha e exilada da vida, perdida, como todos nós, um enigma num labirinto cego, havia muito – meu parente, amigo e irmão, o rapaz perdido, partira para sempre e jamais voltaria.”

Sem Porta, por outro lado, dividido em quatro fragmentos datados – um deles, aliás, publicado separadamente – é um longo canto sobre a solidão, essa que se estende pelo “enorme campo planetário vazio” onde “não havia sombra, nem lugar nem abrigo”. E também nele se faz sentir todo o fôlego da escrita de Wolfe, que tanto alcança a altura de um “fausto de prazer”, onde “estávamos esplendidamente embriagados e alegres, com aquela embriaguez dourada e quente que animava a alma e o corpo” como aquele “cansaço imortal” que contamina tudo, como se a voz pudesse conter o mundo inteiro e “resumir em si aquele murmurante e eterno som do tempo.” E, de facto, parece ser isto que está em causa nesta escrita e nestes dois pequenos textos: que voz consiga conter o mundo inteiro, dar dele todas as matizes, todas as cambiantes, desde os mais extremos e violentos sons aos nuances mais imperceptíveis aos ouvidos humanos, os pensamentos mais evanescentes, os acontecimentos mais precários. Mas isto a partir de um “deserto informe”

“átomo cego nas caves fundas, átomo cinzento e sem voz na desolação da multidão da terra, e a tua fama perdeu-se, e o teu nome foi esquecido, o poder que tinhas desperdiçou-se como terra minada, enquanto permaneces estendido e o rio corre… e o tempo obscuro alimenta-se das nossas entranhas como um abutre, e sabes que estás perdido e que não te podes mover” 

É do fundo desta desolação, desta fúria e deste desespero, que Wolfe consegue erigir um monumento intensamente musical e assombroso.