Um clássico imediato

Um clássico imediato


O desenho minucioso é também absolutamente original, com a cor a ser sabiamente doseada, com os tons frios neutralizados pela presença de Spirou e Fantásio.


Há obras que nascem já clássicas. É o caso desta longa narrativa de Émile Bravo em torno das primícias de Spirou, L’Espoir Malgré Tout, sobre cujo álbum inicial, Un Mauvais Départ, já aqui falámos, em setembro passado.

A ação continua a decorrer na Bélgica ocupada pela Alemanha nazi, um suplemento de miséria moral a acrescentar ao já difícil estado de guerra, com o seu quotidiano de medo, carência e princípios vacilantes, em parte devido à necessidade de sobrevivência… Os motivos principais de Bravo: as consequências da guerra, a subnutrição infantil; a perseguição aos judeus, desde a obrigatoriedade do uso da estrela de David ao início das deportações em massa para um lugar na Polónia cujo nome maldito não fora ainda apreendido por ninguém; finalmente, o amor, a ausência dele, a sua quase impossibilidade em tempos de catástrofe e afastamento, numa abordagem sóbria, clara e nada infantil, uma vez que Spirou, como todas as grandes criações de BD, se destina a todos os públicos.

O desenho minucioso, sendo tão assumidamente “linha clara”, é também absolutamente original. A cor, a cargo de Fanny Benoit, está sabiamente doseada, tons frios neutralizados pela presença reconfortante de Spirou e Fantásio em digressão de teatrinho de marionetas contando as aventuras de… Spirou e Fantásio – uma reconfiguração histórica das origens da personagem, cuja criação e criador se perdem e confundem já noutro tempo e noutro mundo, anterior à ii Guerra Mundial…

Um dos grandes méritos desta narrativa é a densidade psicológica dos protagonistas. Fantásio – o Capitão Haddock de Spirou –, nas suas contradições e fraquezas, postas por vezes em situações-limite, mostra alguma evolução, nunca deixando de ser o contraponto humorístico da generosidade, por vezes candura e integridade, do jovem groom a sair da adolescência. Bravo consegue o prodígio, na releitura que empreendeu desta série canónica, a proeza, só ao alcance dos grandes autores, de contagiar as versões pretéritas de Spirou, de tal modo que será difícil pegar mesmo nos maiores, como Franquin ou a dupla Tome & Janry, alheando-nos da poderosa caracterização inscrita pelo autor.

Mesmo em curso de publicação, com dois álbuns editados em quatro previstos, apostamos a cabeça de leitor de BD na consagração futura e absoluta de L’Espoir Malgré Tout como uma obra maior da nona arte, enfileirando justamente com os pares que a aguardam no lugar que lhe é devido: de O Lótus Azul a Maus, de Forte Navajo a A Balada do Mar Salgado. Pode o leitor português alegrar-se, pois esta excecionalidade será garantia de que, cedo ou tarde, ela aí estará para quantos não possam ler no original.

A sultana jubilosa. Hürrem Sultan (c. 1502-1558), ou Roxelana, como é conhecida no Ocidente, antiga escrava de origem ucraniana, favorita e depois consorte do califa e sultão Solimão o Magnífico, foi a mulher mais influente do Império Otomano, no período áureo do poder turco. Entre muitos retratos seus que subsistem avulta o de Ticiano La Sultana Rossa (c. 1550). Com raízes na Ásia central, e tendo penetrado bem dentro da Europa – os turcos estiveram à beira de conquistar Viena no séc. XVII –, o resultado foi um mosaico cultural fascinante em que Oriente e Ocidente se misturam. Na coleção Reignes de Sang, da Delcourt, saiu o primeiro tomo dedicado à sultana, Roxelane la Joyeuse, com texto de Virginie Gregnier e desenhos de Olivier Roman.Spirou – L’Espoir Malgré Tout – T. II

– Un Peau Plus Loin Vers L’Horreur

Texto e desenho Émile Bravo

Editora Dupuis, Marcinelle, 2019

BDTECA

A sultana jubilosa. Hürrem Sultan (c. 1502-1558), ou Roxelana, como é conhecida no Ocidente, antiga escrava de origem ucraniana, favorita e depois consorte do califa e sultão Solimão o Magnífico, foi a mulher mais influente do Império Otomano, no período áureo do poder turco. Entre muitos retratos seus que subsistem avulta o de Ticiano La Sultana Rossa (c. 1550). Com raízes na Ásia central, e tendo penetrado bem dentro da Europa – os turcos estiveram à beira de conquistar Viena no séc. XVII –, o resultado foi um mosaico cultural fascinante em que Oriente e Ocidente se misturam. Na coleção Reignes de Sang, da Delcourt, saiu o primeiro tomo dedicado à sultana, Roxelane la Joyeuse, com texto de Virginie Gregnier e desenhos de Olivier Roman.

O álbum de que todos falam. Não se afigurava possível, mas parece que alguém “limpou” o cowboy que atira mais rápido do que a própria sombra… Uma homenagem de Matthieu Bonhomme, já de 2016, a Morris e à grande personagem criada em 1946, agora em edição de A Seita, O Homem que Matou Lucky Luke.

Boris Vian. Sexo, álcool, jazz e racismo no sul dos Estados Unidos, Irei Cuspir-vos no Túmulo (1946), livro agreste e cru de Vernon Sullivan, a.k.a. Boris Vian, que à época se apresentou como “tradutor”, conhece agora uma adaptação em BD por Jean-David Morvan, com desenhos de Rey Macutay, Rafael Ortiz, Scietronc. Edição Glénat.