Portugal à prova


Esta pode ser uma das mais exigentes provas da nossa história de séculos. Em democracia e com paz, é certamente o maior desafio individual e comunitário com que nos confrontámos.


O desconhecido, esse nosso velho conhecido, está de novo à nossa frente. Para um povo que desbravou mares em busca de novos mundos e realidades, não deixa de ser espantosa a fragilidade que revelamos em nos focarmos na empreitada atual quando o desafio ocorre em território nacional. É que mesmo o assombro do enfrentamento da coisa desconhecida ou com muitas nebulosas tem certezas que têm de ser interiorizadas, como pressuposto dos impulsos individuais ou comunitários.

É certo que o desdém com que se trata a sementeira cívica em Portugal, nos equilíbrios entre direitos e deveres, na observância do que é letra de lei e na convergência das nossas vontades e ações individuais com o palco da comunidade, deixa muito a desejar. Se não cuidámos do exercício cívico num quadro de gestão corrente, como podemos ter expetativas de obter resultados em tempo de exceção? Quem não aprende a nadar, o mais certo é afogar-se, se lhe faltar o pé. Quem não semeia, dificilmente poderá colher. Parece La Palice mas, ainda assim, a insuficiência do esforço não pode dar resultados. Se não incorporamos o risco no nosso quotidiano, estando nós envoltos em situações de risco naturais e geradas pelos humanos, como podemos agir responsavelmente em função das circunstâncias, em especial das excecionais, como a que estamos a viver com a pandemia da Covid-19?

Portugal e os portugueses estão à prova. Em território nacional, pode ser uma das mais exigentes da nossa história de séculos. Em democracia e com paz, é certamente o maior desafio individual e comunitário com que nos confrontámos.

Pouco importa constatar que quem devia ter decidido não decidiu atempadamente ao permitir os fluxos com Itália sem qualquer controlo, ao não encerrar antes os equipamentos e o espaço público, ao não conseguir recuperar anos de suborçamentação do Serviço Nacional de Saúde ou ao não investir o que devia nos últimos cinco anos, tornando-o mais resiliente perante a tempestade epidémica em curso.

De nada vale sublinhar a irresponsabilidade de colocar o impulso de decisão política nos técnicos de saúde para depois ter de contorcer uma posição para validar a posição política de encerrar os estabelecimentos de ensino, a ridícula quarentena presidencial quando a situação aperta ou o desnorte comunicacional a que se assistiu.

E o que não haveria para dizer sobre os ensaios à esquerda de aproveitamento da emergência para diabolizar o privado, para gerar clivagens público-privado, quando o tempo é de convergências, ou sobre o sinal que é dado à população pela manutenção em funcionamento do Parlamento quando o tempo é de ficar em casa.

Alguns dirão que a Constituição não acolhe as necessidades de resposta a este tipo de emergência pandémica, em termos da imposição de direitos individuais em benefício da comunidade; outros, que o processo de decisão política e os decisores de turno não estão à altura dos desafios colocados pelas tormentas, apesar das proclamações mais ou menos atraiçoadas pela epiderme. Como explicar a renitência em obstaculizar a livre circulação de vírus no espaço europeu? Ou como compreender que os mais altos dignitários da República tenham impedido uma região autónoma como os Açores de, numa situação concreta de risco epidémico, limitar a livre circulação do vírus para um território insular, onde os riscos são muito maiores?

Portugal estaria assim, como a Europa, sem capacidade de se antecipar às realidades, responder às necessidades e sintonizar-se com o melhor para o povo.

A verdade é que nenhuma água pode ser sacudida do capote se cada um não fizer o que deve, nos comportamentos individuais, no respeito das recomendações e no estrito cumprimento das necessidades reais de interação com o espaço público e com outras esferas de liberdade comunitárias.

Em emergência, é sempre difícil fazer a configuração cívica e de senso que não fizemos em quatro décadas de democracia, mas nem tudo está perdido. Há que seguir as orientações, os pedidos que nos protegem e protegem os outros, reduzindo as condições de profusão do contágio, e haverá sempre bons exemplos individuais e comunitários. Se não for por mais ninguém, é seguir as orientações por amor a de quem gostamos e por respeito por quem, em último caso, nos terá de tratar ou assegurar o essencial para a nossa subsistência.

Em emergência e proteção civil, sabe-se que o que previsivelmente pode correr mal tem de ter resposta acautelada, e a melhor resposta é ter a coragem para decidir no tempo certo, o da previsão, e não o das pressões ou das ocorrências. Correr atrás do prejuízo nunca é boa resposta.

Portugal e os portugueses estão à prova. É o maior desafio em território nacional, em tempo de paz. É preciso compromisso individual com as recomendações e o sentido comunitário, num quadro de respeito por quem tem de concretizar as respostas que se impõem, desde logo, os profissionais de saúde, o dispositivo de emergência e todos os que têm de assegurar o abastecimento de serviços e bens essenciais.

Estamos à prova, façamos o maior esforço individual possível que, sobrevivendo à tormenta pandémica, no fim podemos acertar todas as contas que entendermos. Mesmo sabendo que há sempre quem se coloque na vida corrente como na emergência, num quadro tribalista ou maniqueísta de tentativa de justificação do injustificável e quem não exercite a necessária exigência de escrutínio, rigor e coerência em relação aos protagonistas políticos. Os mesmos que são responsáveis pelo anémico nível cívico vigente, com expressão real e digital, nas redes sociais.

Portugal e os portugueses estão à prova. É dar o melhor de nós, a pensar também nos outros. Quem descobriu novos mundos voltará a redescobrir a bonança do tempo corrente, apesar das mazelas que perdurarão.

 

NOTAS FINAIS

Reconfiguração. A situação determina um amplo conjunto de reconfigurações dos comportamentos e das interações. É bom que o exercício político dos ansiosos dos nichos eleitorais tenha noção do tempo que vivemos, da exigência da resposta do sistema de saúde e, após a superação, do esforço de reativação da economia e do quotidiano que será preciso fazer. É tempo do essencial, deixem lá esses acessórios que são debatidos demasiadas vezes no Parlamento.

Reguada. A Europa já devia ter aprendido. Portugal já devia ter apreendido. Não fazer o que se deve em matéria de investimento só gera oportunismos que, em emergência, determinam gastos muito superiores ao que teria ocorrido sem cativações, sem excessos de Excel e afins. Quando não se investe o que se deve, acaba-se por gastar o que não se queria.

Cábula. No país dos milhões para a Web Summit e da ostracização dos computadores Magalhães como instrumento de um impulso de introdução à digitalização, é confrangedora a incapacidade disseminada, não generalizada, de gerar soluções digitais de sustentação do processo educativo e académico.

Escreve à segunda-feira