Estalar do verniz civilizacional


Por que é que falta papel higiénico nas prateleiras dos supermercados?


Ser professor de Economia não significa que se saiba tudo sobre cada assunto, ou que se tenha na “ponta da língua” a resposta a todas as perguntas. Se a isso se juntar o fator surpresa que estas podem trazer associado, até pelo contexto em que são colocadas, não será de estranhar que quando surgiram eu tenha ficado uns segundos em silêncio, enquanto o cérebro, vagarosamente enquadrava o assunto: “Por que é que falta papel higiénico nas prateleiras dos supermercados? É por ser importado?”.

Já tinha visto uma qualquer referência ao dito produto num título de jornal, mas não lhe tinha dado atenção e, por isso, não me tinha dado ao cuidado de ler a notícia. Agora era confrontado com o assunto, a frio.

A razão para a falha de abastecimento não me parecia resultar do facto de se tratar de produto importado, pois, como grande produtor de pasta e de papel, o país será autossuficiente. A falha do papel resultaria, antes, da incapacidade das empresas produtoras responderem, de imediato, a um acréscimo inesperado da procura por parte dos consumidores. Ajuntei que, possivelmente, os produtores iriam ajustar os seus planos de produção e a breve prazo estariam em condições de satisfazer a procura, até porque à medida que os consumidores fossem tendo em casa mais papel higiénico do que o que poderiam consumir a procura do produto tenderia a abrandar.

Julgo que quem me colocou as perguntas ficou minimamente satisfeita com as minhas considerações. Mas, eu próprio não fiquei, sobretudo não percebia o porquê do acréscimo da procura. Logo que tive oportunidade, fui procurar documentar-me sobre o assunto. Constato, de uma leitura mais atenta a alguns jornais e “sites” da internet, que se começam a sentir sinais de “procura excessiva” de produtos de consumo, por parte de pessoas que, antecipando a potencial necessidade de terem de passar por um período de quarentena imposto pelo combate ao coronavírus (Covid-19), avançam para constituição de “stocks” de reserva.

Este tipo de comportamento não é novo. Basta voltarmos atrás alguns meses, à greve dos camionistas de transporte de combustíveis, e termos presente as longas filas de carros para o abastecimento. Nuns casos, motoristas movidos por necessidade de alimentarem as respetivas viaturas, para empreenderem viagens ou retomarem as que estavam em curso; em muitos, simplesmente, por receio de poderem não ter combustível em caso de virem, hipoteticamente, a necessitar.

“Açambarcar: reter tudo ou quase tudo para si” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). É a palavra que descreve o comportamento dos consumidores que, em situações de potencial (não necessariamente real) falha de fornecimento de um qualquer produto, acorrem a comprar quantidades em excesso relativamente ao seu padrão de consumo habitual.

É nestas situações que fica mais visível o quão frágil é o verniz civilizacional que serve de sustentáculo à sociedade em que vivemos. De um comportamento gregário e ordeiro, que parece à prova de qualquer choque em tempos de abundância, rapidamente o cidadão mais sociável muda para a função “cada um por si, salve-se quem puder”, se qualquer sinal de crise, ainda que hipotético, se perfila no horizonte.

Portanto, a sociedade pacata e civilizada em que vivemos só existe enquanto o tempo for de abundância e ou não existir rumor de que algo pode vir a faltar. Faltando estes pressupostos, sobra o individualismo no seu extremo, no limite a selvajaria.

Ao comportamento associal dos consumidores respondem os produtores/distribuidores com ilustrações práticas da Lei da Oferta e da Procura, que são um maná para qualquer professor de Economia que pretende mostrar aos seus alunos, no concreto, como é que os preços respondem quando, para um dado nível de oferta, a procura aumenta. Por exemplo, um frasco de desinfetante que tinha um preço de 3,25 € há uma semana, hoje é vendido a 16,50 €. É um comportamento não ético da parte dos produtores/distribuidores, aproveitarem-se para cobrarem mais pelo mesmo produto. Pode ser catalogado como tal. Porém, será que o comportamento dos consumidores açambarcadores pode ser considerado ético? 

Pena é que, como diz o Povo, “pague o justo pelo pecador”.


Estalar do verniz civilizacional


Por que é que falta papel higiénico nas prateleiras dos supermercados?


Ser professor de Economia não significa que se saiba tudo sobre cada assunto, ou que se tenha na “ponta da língua” a resposta a todas as perguntas. Se a isso se juntar o fator surpresa que estas podem trazer associado, até pelo contexto em que são colocadas, não será de estranhar que quando surgiram eu tenha ficado uns segundos em silêncio, enquanto o cérebro, vagarosamente enquadrava o assunto: “Por que é que falta papel higiénico nas prateleiras dos supermercados? É por ser importado?”.

Já tinha visto uma qualquer referência ao dito produto num título de jornal, mas não lhe tinha dado atenção e, por isso, não me tinha dado ao cuidado de ler a notícia. Agora era confrontado com o assunto, a frio.

A razão para a falha de abastecimento não me parecia resultar do facto de se tratar de produto importado, pois, como grande produtor de pasta e de papel, o país será autossuficiente. A falha do papel resultaria, antes, da incapacidade das empresas produtoras responderem, de imediato, a um acréscimo inesperado da procura por parte dos consumidores. Ajuntei que, possivelmente, os produtores iriam ajustar os seus planos de produção e a breve prazo estariam em condições de satisfazer a procura, até porque à medida que os consumidores fossem tendo em casa mais papel higiénico do que o que poderiam consumir a procura do produto tenderia a abrandar.

Julgo que quem me colocou as perguntas ficou minimamente satisfeita com as minhas considerações. Mas, eu próprio não fiquei, sobretudo não percebia o porquê do acréscimo da procura. Logo que tive oportunidade, fui procurar documentar-me sobre o assunto. Constato, de uma leitura mais atenta a alguns jornais e “sites” da internet, que se começam a sentir sinais de “procura excessiva” de produtos de consumo, por parte de pessoas que, antecipando a potencial necessidade de terem de passar por um período de quarentena imposto pelo combate ao coronavírus (Covid-19), avançam para constituição de “stocks” de reserva.

Este tipo de comportamento não é novo. Basta voltarmos atrás alguns meses, à greve dos camionistas de transporte de combustíveis, e termos presente as longas filas de carros para o abastecimento. Nuns casos, motoristas movidos por necessidade de alimentarem as respetivas viaturas, para empreenderem viagens ou retomarem as que estavam em curso; em muitos, simplesmente, por receio de poderem não ter combustível em caso de virem, hipoteticamente, a necessitar.

“Açambarcar: reter tudo ou quase tudo para si” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). É a palavra que descreve o comportamento dos consumidores que, em situações de potencial (não necessariamente real) falha de fornecimento de um qualquer produto, acorrem a comprar quantidades em excesso relativamente ao seu padrão de consumo habitual.

É nestas situações que fica mais visível o quão frágil é o verniz civilizacional que serve de sustentáculo à sociedade em que vivemos. De um comportamento gregário e ordeiro, que parece à prova de qualquer choque em tempos de abundância, rapidamente o cidadão mais sociável muda para a função “cada um por si, salve-se quem puder”, se qualquer sinal de crise, ainda que hipotético, se perfila no horizonte.

Portanto, a sociedade pacata e civilizada em que vivemos só existe enquanto o tempo for de abundância e ou não existir rumor de que algo pode vir a faltar. Faltando estes pressupostos, sobra o individualismo no seu extremo, no limite a selvajaria.

Ao comportamento associal dos consumidores respondem os produtores/distribuidores com ilustrações práticas da Lei da Oferta e da Procura, que são um maná para qualquer professor de Economia que pretende mostrar aos seus alunos, no concreto, como é que os preços respondem quando, para um dado nível de oferta, a procura aumenta. Por exemplo, um frasco de desinfetante que tinha um preço de 3,25 € há uma semana, hoje é vendido a 16,50 €. É um comportamento não ético da parte dos produtores/distribuidores, aproveitarem-se para cobrarem mais pelo mesmo produto. Pode ser catalogado como tal. Porém, será que o comportamento dos consumidores açambarcadores pode ser considerado ético? 

Pena é que, como diz o Povo, “pague o justo pelo pecador”.