As intempéries e “o Pai Natal não existe”


Portugal sempre esteve sujeito a fenómenos meteorológicos extremos e a outras expressões- -limite, como os incêndios florestais, mas insistiu e insiste em não atuar em conformidade.


As intempéries sublinham os problemas estruturais e a ausência de interiorização da consciência do risco, ao não fazermos o que devíamos. Se não atuamos em conformidade no dia-a-dia, como poderíamos estar preparados para a excecionalidade dos fenómenos meteorológicos que nos fustigam com cada vez maior acutilância e frequência?

Em dias, passámos de uma situação de escassez de água para um quadro de excesso nas linhas de água, nos circuitos urbanos em que o homem se sobrepôs ao curso normal da natureza e em muitos pontos do país em que as infraestruturas estiveram sujeitas a um regime de desleixo na realização das manutenções básicas, antes com o argumento da troika, agora com fundamento em sabe-se lá o quê.

O risco existe, está presente no quotidiano e deve ser incorporado na gestão e nos comportamentos das pessoas, das instituições e dos serviços. Não fazer o suficiente até pode disfarçado num quadro de normalidade mas, perante fenómenos naturais extremos, sublinha todo o desleixo e negligência em acautelar as situações. É claro que existem muitos passivos de desleixo acumulado no ordenamento do território, na ausência de manutenção de infraestruturas e no alívio do esforço de transmissão de uma cultura de segurança e de prevenção do risco. Tudo isso vem à tona quando as circunstâncias mudam. É assim na segurança rodoviária, onde se deixou de realizar prevenção sustentada e se optou pela fiscalização mais ou menos ativa – no entanto, dependente de haver dinheiro para os combustíveis ou efetivos disponíveis. É também assim em todas as áreas da emergência e da proteção civil, sujeitas a demasiadas modelações e experimentalismos, em função de humores vários, mais orientados para a imposição de marcas de governação do que para o reforço da eficácia operacional.

Portugal sempre esteve sujeito a fenómenos meteorológicos extremos e a outras expressões-limite, como os incêndios florestais, mas insistiu e insiste em não atuar em conformidade com a realidade e a previsível exigência.

Por exemplo, das ocorrências dos últimos dias que afetaram infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, quantas não aconteceram porque as rotinas de manutenção foram alteradas por condicionamentos financeiros das entidades responsáveis? Do socorro para a reposição de serviços essenciais para os padrões de vida das pessoas, como a água, a eletricidade ou as telecomunicações, quantas intervenções não são retardadas pelas opções de gestão das grandes empresas por terem grandes empreiteiros fornecedores de serviços, e não empresas locais conhecedoras do território e das suas vicissitudes?

Num país pouco dado a planear com cabeça, tronco e membros, a perda de proximidade condiciona a operacionalidade, para além de ser lesiva das dinâmicas locais correntes. O problema é que o que não fazemos ou esboçamos fazer em modo corrente fustiga-nos em tempo de exceção. O drama é que a exceção está a ser cada vez mais a regra e não há preparação na prevenção, na intervenção e na reposição. É que mesmo o esforço de reposição, em especial no plano dos apoios públicos, é tão burocrático que não cumpre o objetivo de responder em tempo útil às pessoas e aos territórios. O Estado devia claramente definir o que são os apoios que disponibiliza e ter o foco central, agilizado e com eficácia, no espaço público, nas infraestruturas, equipamentos e espaços de utilização comum. Mas não, gera expetativas a todos e depois, porque tem as finanças no processo e os burocratas nos comandos, demora meses e anos a responder às necessidades urgentes. É claro que tem de haver sempre uma dimensão humanista e solidária de intervenção com o foco nas pessoas e nas famílias, mas esta tem de ser agilizada, sintonizada com os ritmos das necessidades, e não com os burocratas.

Esta dialética entre o corrente e o excecional projeta-se em todos os setores das funções do Estado e do pulsar da sociedade portuguesa, da saúde à elaboração de um Orçamento do Estado. Deveria ser razão suficiente para garantir que a expressão das respostas e das necessidades correntes não condicionaria além do aceitável o modo de vivência em excecionalidade, mas são dados passos de incoerência, de insustentabilidade e de falta de senso que permitem antever o pior. Pode não ser para o amanhã ou para a legislatura, mas há ações ou inações que não têm em conta o todo e não acautelam a emergência. Tal como nas intempéries. Quanta dessa água esgueirada para o mar ou para o desperdício não deveria ter mais sistemas de retenção, orientados exclusivamente para o abastecimento e para a atividade agroalimentar? Mas não, diabolizaram as barragens por via da sua utilização mista, produção de energia e retenção para abastecimento, e das questões ambientais, e desperdiçamos recursos hídricos.

Esta dialética entre o corrente e o excecional deveria levar-nos, como comunidade, a ter uma maior exigência em relação ao que não é feito em vez de pseudo-exercitar a cidadania em relação ao que é feito, apesar de ser sempre importante questionar as opções políticas, económicas e sociais. Num país com parca explicação, é sempre importante tentar que as decisões, deliberações e opções sejam explicadas.

A intempérie faz parte do ciclo de vida. O que não deveria fazer, no séc. xxi, era o nível de amadorismo para prevenir, intervir e repor, mas são opções que alguns tomam e nós deixamos.

É neste contexto que podemos verbalizar sem temor que “o Pai Natal não existe” – não há espaço para o sonho ou para a ilusão, é mesmo preciso agir no dia-a-dia para ser capaz de antever e reagir nas intempéries. Quanto ao resto, deixem as crianças sonhar.

Mesmo havendo quem vá passar o Natal sem as condições de conforto adequadas, pelas circunstâncias correntes ou pelas excecionalidades dos últimos dias, desejo a todos um Feliz Natal, com o resgatar do melhor que a época tem nos comportamentos individuais, nas relações com terceiros e nos contágios das comunidades.

NOTAS FINAIS

AS TEMPESTADES. O fustigar dos últimos dias trouxe-me à memória 2009. Há uma década, o Oeste foi fustigado por um fenómeno meteorológico extremo, com elevados danos materiais. Como governador civil de Lisboa, tive oportunidade de mobilizar respostas de emergência e de reposição do potencial produtivo da região, com os contributos decisivos dos ministros Rui Pereira e António Serrano, respetivamente da Administração Interna e da Agricultura. No que dependeu de nós, materializaram-se as respostas. Do que passou pelas Finanças, saí do Governo Civil de Lisboa em 2011, sem atribuir os apoios.

A BONANÇA. Acontecerá quando deixarmos de ter as questões estruturais no azimute apenas enquanto são mediáticas ou estão nas preocupações cimeiras das pessoas. A preocupação com as florestas e os riscos de incêndio, também associada à valorização do interior, parecem estar a perder relevância. O Estado gastou 900 mil euros num sistema de alerta de emergência por SMS que não utilizou nas intempéries dos últimos dias.

Escreve à segunda-feira