Clive James (1939-2019). O poeta que fez rir a própria morte

Clive James (1939-2019). O poeta que fez rir a própria morte


O poeta, crítico, apresentador e autor de tantos programas de televisão, morreu dez anos depois de ter recebido o primeiro diagnóstico terminal. 


Deixem lá de se preocupar, deste mundo ninguém sai vivo. Este foi só um dos célebres ditos espirituosos que o poeta, crítico, radialista e apresentador de televisão Clive James escreveu ou proferiu na sua longa carreira mediática. Com o seu humor sardónico apoiado numa erudição radiante, o australiano soube instalar-se em terras de Sua Majestade e pôr-se muito à-vontade, refinando nos jornais o seu tom insolente e desabusado, antes de chegar à televisão e tornar-se uma das mais reconhecíveis figuras da vida pública britânica. James morreu no passado domingo, aos 80 anos, na sua casa, em Cambridge, quase uma década após ter recebido o seu primeiro diagnóstico terminal. 

O seu talento para renegociar o crédito à morte foi de tal ordem que mesmo ele parecia surpreendido. Sofrendo de insuficiência renal, e com o desgaste da leucemia, enfisema e uma série de carcinomas que o vinham sovando ao longo dos últimos anos, a morte parecia envaidecida enquanto argumento que James, como um «irreprensível protagonista», transformou num derradeiro, embora reticente, espectáculo. Como o amigo Robert McCrum referia no The Guardian, se James passou boa parte de uma década surpreendido ao despertar cada manhã depois de olhar para o fundo de outra noite que podia bem ter sido a última, foi encontrando o ânimo e a coragem, a graciosidade e estoicismo para não se apagar simplesmente, e até ao fim soube balançar entre a provocação e a capacidade de inspirar.

Nestes anos em que a perspectiva da morte nunca derrubou o seu intelecto nem a capacidade de apreciar a vida e todas as suas ironias, James manteve-se bastante activo, publicando ensaios, traduções e reuniões de poemas, e  foi até mantendo crónicas nos jornais, como a Reports of my Death, que escreveu até 2017, no The Guardian, e onde falou das atribulações de um homem definhando sem perder o humor. Nessa coluna revelou que teve um leitor que lhe escreveu a queixar-se pelo facto de ele continuar vivo depois de ter arrancado tantas vezes as penas do que se esperava que fosse o seu canto de cisne. Em 2014, publicou o aclamado poema de despedida Japanese Maple, que, com o passar do tempo veio a tornar-se motivo de embaraço, como aquele moribundo que, com a família de volta do leito, diz: «É agora… Vem aí a grande coisa.» E fecha os olhos. Há um silêncio, os familiares debruçam-se sobre ele, e ainda que contenha a respiração por um momento, o moribundo vê-se forçado a mandar todos para casa: «Afinal, não. Ainda aqui estou.»

À medida que as semanas davam em meses e estes se desdobravam em anos, as notícias da sua tão frágil saúde levaram a imprensa mundial a dar-lhe os últimos ritos; desde entrevistas de vida, notas acompanhando  a evolução do estado clínico com a voz tremida e, uma vez que a doença o impossibilitou de visitar o seu país natal, da Austrália veio tudo o que era jornalista desses que fazem a caderneta das lendas. Para se livrar do embaraço, nos momentos de convalescença, James oferecia conselhos aos jornalistas sobre como escreverem o seu obituário, lembrando que no que respeita a dados biográficos é importante levar em conta que «manter a coisa sucinta é o que se recomenda, e, se der para resumir tudo numa frase, ainda melhor».

Seguindo a sua orientação, não nos parece tão relevante determo-nos no seu percurso como lembrar outro dos seus ditos espirituosos: «Senso comum e sentido de humor são uma e a mesma coisa, a velocidade a que se movem é que os diferencia. O sentido de humor não é mais que o senso comum, mas a dançar.»

Não deixa de ser importante saber que James atribuía à morte do pai, Albert, quando tinha apenas seis anos, e à dor que trancou a sua mãe na viuvez, um papel crucial no seu desejo de vingar essas duas vidas interrompidas, e como isto o levou a lançar-se sobre o mundo com uma urgência fenomenal. Num dos seus poemas conta a viagem que fez a Hong Kong para visitar o túmulo no cemitério da guerra em Chai Wan. Albert morreu quando o avião que iria trazê-lo de volta a casa se despenhou em Taiwan, isto depois de ter sobrevivido a um campo de prisioneiros de guerra e a um outro de trabalhos forçados. «Estou a tentar viver a vida que eles poderiam ter tido», disse James numa entrevista, em 2009. «É a minha forma de tentar retribuir-lhes pela vida que me deram. Chego a desprezar a sorte, do tanto que esta me foi dada.»

Nascido Vivian James, em 1939, em Sidney, de tanto ser gozado pelo seu nome de baptismo, demasiado feminino, a mãe não se importou quando preferiu trocá-lo por Clive. Desde cedo se fez notar com os artigos de crítica em revistas literárias, e tendo ido viver para Londres no início da década de 1960, não demorou a cativar os leitores com a sua abordagem salutarmente malcriada, isto num tempo em que dar provas de inteligência era em si mesmo uma forma de ousadia. Malhava forte e feio nos livros e autores de que não gostava, sendo impiedoso mas extremamente divertido. Certa vez escreveu: «Eis um livro tão aborrecido que um dervixe volantim poderia lê-lo para chamar o sono e adormecer sobre as suas páginas. Se o leitor se dispuser a recitar uma só destas páginas ao ar livre, o mais certo é que os pássaros despenquem dos céus e os cães caiam para o lado, mortos.»