Problemas globais


As grandes organizações globais, como o sistema financeiro ou até o futebol da FIFA, fazem as suas próprias leis e criam regras de funcionamento à revelia das democracias.


Não costumo gastar muito tempo com os problemas internacionais em geral e da União Europeia em particular, porque existem problemas suficientes em Portugal a requerer a nossa atenção para me preocupar com as questões em que a nossa influência é fraca. Abro uma exceção devido ao resultado das eleições em Espanha, porque vejo demasiadas notícias a tratar a questão do crescimento da direita e do chamado populismo um pouco por todo o lado, com explicações frequentemente infantis.

O crescimento de novos partidos da extrema-direita em Espanha como na Itália, na Polónia, na República Checa, bem como a radicalização de partidos tradicionais nos Estados Unidos e no Reino Unido, têm causas que estão a ser mal ou insuficientemente compreendidas em Portugal como na Europa. Vejamos porquê:

1 – Nos países indicados, como noutros no futuro próximo, os eleitores revoltam-se devido à incapacidade dos governos para resolver, ou fugir a enfrentar, muitas das verdadeiras questões do nosso tempo, para se dedicarem a objetivos menos importantes para os cidadãos, como sejam os temas fraturantes tão em uso, para delícia de algumas populações urbanas. Ou outros de natureza económica que favorecem setores particulares da economia, nacional e global, em que a corrupção e o favoritismo assumem um papel determinante.

2 – Em segundo lugar, há hoje nas sociedades modernas uma forte aceleração da mudança, o que cria novos problemas, alguns de grande dimensão, mas que os Governos se mostram incapazes de prever e, em consequência, de resolver em tempo útil.

3 – Entre todos, existem duas questões de enorme importância que os Governos e os blocos de países não dão mostras de compreender: (a) a existência de um forte movimento de globalização e a ausência de uma qualquer forma de governação global. Isto é, as grandes organizações globais, como o sistema financeiro que opera globalmente, ou até, numa outra dimensão, o futebol da FIFA, fazem as suas próprias leis e criam regras de funcionamento à revelia das democracias, com enormes níveis de corrupção facilitados pela livre e rápida circulação do dinheiro; (b) as enormes e modernas possibilidades criadas para as migrações dos países pobres para países que os imigrantes pensam podem oferecer-lhes uma vida melhor, com a nota trágica de isso ser aproveitado por máfias e grupos islamitas, com o perigo da islamização da Europa, séculos depois de esses povos, com culturas e religiões muito diferentes, terem sido remetidos para outras partes do mundo.

Estas são duas questões que deveriam já ter sido tratadas há muitos anos e que não foram previstas pelos governos, nomeadamente da União Europeia, que acordaram tarde e mal para esta realidade ou que ainda não acordaram de todo. Com a nota de que, quando os novos problemas não são tratados no seu início, tornam-se intratáveis, que é o que está a acontecer com as migrações e com alguma globalização, em que os Governos são autênticas baratas tontas a encontrar panaceias para aquilo que não sabem ou não querem resolver.

Pessoalmente, dei-me conta destas questões há 20 anos em duas moções que, com um grupo de amigos, apresentámos nos xii e xiii congressos do Partido Socialista, onde, entre outros temas, tratámos da insustentabilidade de níveis profundamente divergentes de desenvolvimento entre o Norte e o Sul do planeta, fazendo propostas que eram perfeitamente viáveis. Por exemplo, em relação aos perigos resultantes das migrações, escrevemos: “Repetimos que o fenómeno da globalização não pode ser corretamente analisado usando os critérios normais do nosso tempo e, menos ainda, através dos interesses das sociedades industrializadas. Para compreender a globalização e, principalmente, para a orientar no sentido dos valores humanistas que nos são tão caros como europeus, devemos ser capazes de antever as transformações políticas, económicas e sociais, em que a solidariedade deve assumir o papel determinante. Nesse sentido, uma segunda reivindicação das forças do progresso global deve conter uma transferência global de recursos dos países desenvolvidos do Norte para os países pobres do Sul, recursos a serem geridos nesses países pelas Nações Unidas e destinados apenas à educação e à saúde, através, por exemplo, de uma taxa de 1% sobre todo o consumo de bens e serviços dos países desenvolvidos, valor acrescido de 1% sobre as importações oriundas dos países em vias de desenvolvimento”.

A ideia, em relação às Nações Unidas, era a de tornar a instituição independente dos Estados, passando a ser financiada pelos cidadãos, a fim de poder contribuir para a governação global, cuja ausência é um dos grandes problemas do nosso tempo. Nesse mesmo sentido, há cerca de dois anos escrevi uma carta ao secretário-geral António Guterres, sugerindo que ele pudesse colocar na agenda internacional três objetivos: (1) o financiamento das Nações Unidas a ser feito diretamente pelos cidadãos, o que já lhe tinha sido apresentado em 2001, ou seja, reconheçamos agora que o mundo dá muitas voltas; (2) o fim dos paraísos fiscais e as propostas de como isso é possível; (3) o controlo pela Assembleia-Geral das Nações Unidas da venda de armas aos países pobres do planeta. Infelizmente, o secretário-geral das Nações Unidas respondeu que se tratava de questões que estavam fora das atribuições da instituição, algo que já se sabia e que, por isso mesmo, lhe tinha sido apenas pedido, aproveitando a sua visibilidade como secretário-geral, para que colocasse os três temas, ou algum deles, na agenda mediática.

Convido agora os leitores a pensar o que aconteceria se, por força de um qualquer milagre, se fizesse um referendo sobre estas três questões, que constituem algumas das maiores fontes de desgoverno do nosso planeta. Só o fim dos paraísos ficais, através de uma moratória de um ano para a conversão do dinheiro fora do controlo dos Governos, depois da emissão de novas moedas que substituíssem as existentes, dava aos Governos nacionais os recursos necessários para um novo processo de desenvolvimento global, nomeadamente nas áreas da pobreza como dos movimentos pelo ambiente.

Ao tempo, na minha carta a António Guterres, assumi que as propostas poderiam ser consideradas um pouco líricas, mas o fim da escravatura também foi considerado uma ideia impossível quando o nosso António Vieira defendeu os direitos dos índios do Brasil.

Termino com a ideia de que nada está vedado a um país pequeno e pobre como o nosso se tiver a consciência dos grandes problemas do nosso tempo e sobre eles souber emitir a sua posição.

 

Empresário

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”