Mário Cláudio: “Não quero que as pessoas julguem que eu sou o fogueteiro da festa”

Mário Cláudio: “Não quero que as pessoas julguem que eu sou o fogueteiro da festa”


O fôlego narrativo de Mário Cláudio daria e sobraria para apagar as velas dos seus 50 anos de vida literária. O bolo teria de ser feito de uma massa densa, tensa e intensa, pouco apetecível aos leitores ocasionais.


Os leitores ocasionais reservam-lhe qualificativos que não vão com o mercado das tendências literárias: erudito, inacessível, obscuro, barroco, palavroso. E há até os que sugerem que engoliu um dicionário. Na orquestração romanesca da sua vida que é o livro Astronomia, Mário Cláudio responde com trabalho continuado, privações, desânimos, frustrações. Pudesse a sua família literária – António Vieira, Camilo Castelo Branco, Raul Brandão, Aquilino, Pascoaes, Tomaz de Figueiredo, Agustina – acorrer às iniciativas que assinalam os seus 50 anos de vida literária com o propósito de o felicitar, e o mais certo é que perdessem a viagem. O autor, que não marcou presença no congresso dedicado à análise da sua obra, salta da primeira fila para o recato de outros lugares mais ajustados a quem não se vê como um busto.

 

Comecemos pelo berço. “Cada um é para o que nasce”, disse recentemente na sua página, e acrescentava: “Não nasci para o Facebook.” É uma questão de incompatibilidade ou de ironia?

Há aqui um grão de ironia. As redes sociais são um mecanismo de fixação de comportamentos compulsivos. As pessoas não são fiéis, estão escravizadas. Só que a maior parte não o quer reconhecer, está em negação, como um alcoólico ou um toxicodependente. E isso já é perigoso. Mas há outros perigos: parecendo um mecanismo muito democrático, acaba por agravar a estratificação social. Cria uma espécie de hierarquia, que tem a ver com os gostos, com as fotografias exibidas. E através disso também se estimulam comportamentos como o alpinismo social. Ainda há pouco apareceu um artigo de António Damásio, que disse que as redes sociais estão a promover a corrupção do tecido social. As pessoas beneficiam de alguma proteção natural por não estarem expostas, dizem coisas que não diriam de outra maneira, e muitas vezes de uma forma agressiva, insultuosa e que configura uma certa clandestinidade. Isto já não falando na criação dos falsos perfis, nem dos mecanismos de controlo das consciências, que é evidente. Servem-se conteúdos que vão claramente satisfazer as nossas curiosidades – que eles já sabem quais são e despejam logo a seguir em cima de nós. É assustador.

 

E também favorecem o alpinismo literário e cultural?

Sim, claro, pessoas que se fazem passar por aquilo que não são e que se servem das redes sociais de forma narcísica para alardear conhecimento nesta ou naquela área. Não é por acaso que quando não aparece uma imagem fisionómica que permita a identificação imediata da pessoa, nós já sabemos que se trata de pessoas com baixa-autoestima em termos de auto-imagem. Tratam de arranjar um retrato que as favoreça mais, como acontecia com os reis que queriam casar e mandavam às princesas retratos seletos. E depois quando aparecia o próprio havia grandes decepções, não correspondia a bota à perdigota.

 

Retrato credível, legítimo é o que se ergue destes 50 anos, pontuados por livros marcantes: “As Batalhas do Caia”, “Peregrinação de Barnabé das Índias”, “Astronomia”, “Os Naufrágios de Camões”, o “Tiago Veiga”, é claro, esse autor involuntário da mais desbocada histórica crítica da literatura portuguesa…

Já não faço outro, saiu-me do corpo. O Tiago Veiga é um livro que representa um grande empenhamento em termos de oficina, de pesquisa. Foi uma empresa que eu abracei e nunca mais vou fazer algo que se pareça com aquilo. Para fazer aquilo também é preciso ter força física. As pessoas julgam que é só a cabeça. Não. Há um desgaste físico evidente quando se escreve um livro, então quando se escreve um livro com aquela dimensão o desgaste é imenso. É curioso: esse foi um livro que não teve muita venda nem prémios: era grande, tinha ilustrações a cores, o que o encareceu muito. Mas não tendo sido um livro popular, muito consumido, muito lido, transformou-se num livro de culto, ao ponto de ter tocado vários leitores, até a nível académico. Esses leitores privilegiados, as suas reações compensam-me de tudo. Não é uma figura recortada em cartão, continua vivo.

 

E é uma figura desassombrada que põe a crítica de hoje a um canto, não lhe parece?

O Tiago Veiga é um sem-papas-na-língua; por outro lado, é um homem truculento, não é uma figura fácil. Se tivesse de encontrar na nossa literatura uma figura da mesma família, pensaria imediatamente em Jorge de Sena, pelo que há nele de vulcânico, de turbulento.

 

Falemos daquilo a que o Tiago Veiga chamou “o pátio das cantigas” e o narrador de “Astronomia” chama o nosso “galinheiro literário”. Ao abrir os bastidores do nosso meio literário não temeu reações, incompreensões, penalizações?

Já tinha uma idade em que essas coisas não se temem. Podiam dizer de mim o pior possível mas não me podiam fazer mal, o que eu tinha para fazer de mais importante já estava feito. A impunidade de que beneficiam os velhos é uma das grandes conquistas da idade. Ao velho tolera-se tudo: o palavrão, o comportamento infantil, a irreverência.

 

Sim, mas não estamos a falar propriamente de um velho caquético…

A caquexia pode ser altamente criadora. Veja o que aconteceu com o Goya do período negro, que faz aquela pintura fabulosa fora de todos os padrões e que abre as portas para a modernidade. Mas reconheço que foi também um ajuste de contas: vamos lá dizer o que não pude dizer até agora. E isto pode trazer alguns incómodos, mas traz mais benefícios do que incómodos. Perder o medo de sermos descobertos naquilo que realmente pensamos é fundamental. Uma das grandes vantagens da idade é o rasgão da liberdade.

 

E os tiques da nossa vida cultural?

Os tiques da nossa vida cultural tendem a perpetuar-se. Portugal não está no mundo, é periférico. Tem uma literatura periférica, invisível no estrangeiro. Pode haver muitas traduções de autores portugueses, mas essas traduções nunca passam da primeira edição. E nós precisamos de ter essa visibilidade no estrangeiro para a ter dentro de nós, dentro do país. Quando o Manoel de Oliveira fez o Amor de Perdição foi arrasado pela crítica, disseram o pior possível. Mas logo a seguir houve um grande prémio internacional e um grande entusiasmo do estrangeiro. Mudaram logo. Precisamos do aval do estrangeiro. Aconteceu com a Joana Vasconcelos, a Paula Rego, a cantora Mariza, e antes dela a Dulce Pontes. Precisamos de ser alimentados pela aprovação do estrangeiro como um doente precisa da bomba de oxigénio quando está em situação de agonia. Temos a visibilidade que nos dão os turistas que nos visitam. E só exportamos a cultura que está a dar, não exportamos a grande cultura do passado. Quem se lembra hoje em esforçar-se por encontrar no estrangeiro um editor para o Aquilino? Quem vai interessar-se pela obra da Agustina na Inglaterra, que seria fundamental? Portugal nunca criou lobbies para os seus autores.

 

Assinalam-se por estes dias, através de uma série de iniciativas, os seus 50 anos de vida literária. O que espera destas comemorações?

Nada. Eu não espero nada. Quando se começou a esboçar a ideia de celebrar os meus 50 anos de vida literária, disse logo às pessoas que estavam envolvidas que não iria participar em nada. E tem acontecido assim. Todos os eventos foram gizados pela Leya, pelas câmaras, do Porto e de Paredes de Coura, a Faculdade de Letras do Porto, a Cooperativa Árvore. As entidades que estão ali envolvidas, embora estimuladas pela Leya, que é a timoneira das comemorações, através da Maria do Rosário Pedreira e do Rui Breda, organizam-se por si. Eu pus-me fora.

 

E porquê?

Por vários motivos. Primeiro porque não quero que as pessoas julguem que eu que sou o fogueteiro da festa, o que é sempre uma situação ingrata e até ridícula. Por outro lado, também não quero que as pessoas julguem que eu assisto às festas com grande contentamento. Assisto a essas festas com reconhecimento, com gratidão. Mas aquilo que eu tenho procurado acentuar é que chamem sobretudo a atenção das pessoas para o que eu fiz. A minha presença é secundária, o importante é que os meus livros lá estejam. E têm feito isso. Não irei estar presente em algumas das situações, por exemplo no congresso. Já vi escritores a fazerem isso, mas eu não consigo ver-me. Acho que é um bocado patético estarem sentados numa plateia a ouvir um conjunto de académicos que desfilam para falar sobre o autor, e eu estava ali, logo na primeira fila, a dizer que sim com a cabeça. Considero isso uma coisa arrepiante. É o tipo de situação em que não me quero ver. Por outro lado, há sempre umas vaidades que se irritam, pessoas que se sentem molestadas, marginalizadas por não terem sido convidadas para isto ou para aquilo. E isso vai fatalmente acontecer. Mas também vai acontecer que lá não vão estar pessoas e provavelmente deveriam ter sido convidadas, porque não fui eu que fiz a lista. Quero também poupar-me a isso.

 

Parece-lhe que a noção do ridículo se está a perder?

Sim, e o Facebook é outro espaço de exposição do ridículo. Por vezes fico espantado com a forma como certas pessoas, da área das letras, designadamente, e pelas quais tenho grande admiração e estima, se expõem a esse ridículo através, por exemplo, da exibição da sua vida literária, os sítios onde vão… Há escritores, alguns deles já nada jovens, que transformaram a sua página (pessoal, não é uma página institucional) num autêntico quiosque. Penduram lá recortes de jornais, recensões, fotografias das coisas que disseram sobre eles, as entrevistas, as críticas, sempre as boas. As más nunca põem. Eu acho que isso é patético, não quero fazer esse papel.

 

Num gesto raro no nosso meio literário, fez arrancar as festividades, digamos assim, publicando na sua página uma crítica nada elogiosa ao seu último romance, “Tríptico da Salvação”.

Essa crítica chegou-me de forma muito curiosa. Alguém no FB, que nunca fala sobre meu trabalho, achou por bem enviar-ma. É o comportamento da amiga que telefona à outra amiga e lhe diz: “Olha, eu vi o teu marido com a irmã, mais jovem”, “Mas ele não tem nenhuma irmã!”, “Não? Um rapariga bonita com quem ele estava, lá num cantinho da pastelaria…” (risos). São as grandes amigas. Ao longo destes 50 anos, passei por várias situações de um certo arrivismo, um certo alpinismo cultural. Gente muito nova, com poucas leituras… Lembro-me de quando publiquei Tocata para Dois Clarins, apareceu uma senhora que me liquidou completamente [Patrícia Cabral Correia Guedes] e cujo diapasão crítico era este: era um livro que fazia a apologia do fascismo, quando o livro é o exato contrário. E depois houve duas pessoas que vieram defender-me publicamente: o António Lobo Antunes e o Manuel Alegre. Uma atitude inesquecível. Acho que hoje já ninguém faz isso. Tenho sido uma presença relativamente consensual na literatura portuguesa, não tenho sido muito agredido pela crítica. Mas de vez em quando lá calha.

 

Voltando um pouco atrás. Parece-lhe que hoje os leitores tentam substituir, de algum modo, o convívio com as obras pela presença do escritor?

Antigamente, quanto menos o autor se expunha mais se distinguia; hoje, quanto menos se expõe, menos se vê. E ao não não se ver é como se não existisse. Lembrou-me de um almoço, há muitos anos, de homenagem ao José Régio (que também pintava) em que estava muita gente que o lia. No final, alguém trouxeram-lhe uns pratos para ele fazer uns desenhos para oferecer. E ele fez. Às tantas, um dos irmãos do Régio abeirou-se dele e disse: “Ó José Maria, tu sabes o que estás a fazer? Tu estás a banalizar-te.” Era outra concepção da presença do autor. Havia uma estratégia de sacralização do autor, hoje há uma estratégia de demagogização do autor.A escrita converteu-se num ofício banal?Todos querem um ocupar e serem identificados na conotação com esse lugar. E agora que se banalizou o ofício de escritor, toda a gente escreve e toda a gente se considera escritor. Lembro-me, a esse propósito, de um jovem autor que, da primeira vez que me telefonou, anunciou-se-me como escritor, que é sempre uma situação que me causa uma certa irritação. Eu nunca fiz isso. É como aquelas pessoas se que auto-anunciam como doutores, o que é uma coisa trágica.

 

Será por temerem que ninguém dê por isso?

As pessoas não notam que estão a contribuir, com o próprio comportamento, para aquilo que é nocivo ao seu próprio trabalho, que é a efemeridade. Estão-se a diluir na massa amorfa de pessoas que acabam por não se destacar porque estão, eventualmente, muito mais interessadas em colher os frutos do seu eventual trabalho do que em trabalhar. Convém não esquecer que vivemos numa época e numa civilização que exibe os comportamentos narcísicos de uma forma desesperada. Quer esse narcisismo se manifeste exuberantemente, como é o caso do Trump, quer se manifeste de uma forma encoberta, uma falsa humildade, é um narcisismo ao contrário.

 

É sempre apresentado como ficcionista. Mas escreveu poesia, teatro, biografias, ensaios, crónicas, fez traduções…

A vida de um escritor tem sempre algo de omnívoro e até de antropofágico. Lembrei-me num destes dias de uma confidência que me fez o Eugénio de Andrade, que era… uma espécie de bardo do amor, um homem que vivia o seu ofício de uma forma excludente de tudo o mais, uma espécie de flor de estufa que estava ali só para fazer aquilo. É a imagem do escritor na torre, mas como todos os que vivem trancados, precisam de sair para tomar ar. Ele contou-me que nunca foi para a cama com ninguém sem pensar naquilo que haveria de escrever sobre esse encontro. O Gide tinha uma atitude idêntica. Dizia que não conseguia aperceber-se da existência de uma cidade se não a humanizasse através de uma relação amorosa com um habitante dessa cidade.

 

Há aqui um instinto predação?

E instrumentalização do outro. Mas também há o contrário: a elevação da outra pessoa a um estatuto artístico, estético, literário onde ele/ela nunca teria ascendido se não tivesse havido esse encontro. Isso é verdade não só em relação ao aspeto amoroso mas em relação a qualquer comportamento. Se um escritor se senta à mesa e não extrapola do que está a comer, de alguma coisa que tem a ver com a escrita, não é exatamente um autor. É outra coisa.

 

Falou de Eugénio de Andrade. Curiosamente, trabalharam ambos no mesmo local [a caixa de Previdência dos Serviços Médico-Sociais].

Sim, mas eu já o conhecia. Tinha 16 ou 17 anos quando o conheci numa noite de S. João. Eu estava num grupo de amigos quando ele apareceu e fomos todos cear. Falou bastante sobre Torga, em termos muito negativos, desprimorosos. O Eugénio era o centro das atenções e assim se via, foi sempre assim ao longo da vida, era um caso de narcisismo paroxístico. Mais tarde – já conhecia muito bem a obra dele – vim a encontrá-lo na mesma instituição onde eu trabalhava como chefe de secção e ele como inspector geral.

 

E como foram esses tempos?

Foram tempos horríveis. Aquilo era uma coisa burocrática, medonha, uma construção salazarista de alto a baixo. Era um universo fascista, na sua pior expressão, lá dentro havia informadores, bufos. A hierarquia era toda fiel ao regime: organizavam excursões de apoio ao Salazar e ai de quem falhasse. Eu não ia e fiquei imediatamente classificado como um tipo que não era afeto ao regime. E diziam-me, de forma descarada: “tem toda a liberdade de não ir, mas sabe que em termos de carreira essas coisas são úteis…” Mas foi um varandim interessante para contemplar certos comportamentos humanos.

 

Conversavam sobre essa insatisfação comum naquele espaço?

O Eugénio de Andrade falava pouco, defendia-se. Não tinha nada a ver com aquele mundo, aquilo era um ganha-pão e ele preservava-se. Pelo facto de ser homossexual, era um homem que estava sujeito àquilo a que se chama a troça da canalha. A sua homossexualidade era constantemente sublinhada, os tiques imitados, contavam-se graçolas grosseiras e ele tinha consciência disso. Lembro-me de uma vez me ter dito: “Eu, aqui na Caixa de Previdência, tenho de me defender de ser penalizado pelas minhas fragilidades.”

 

E o Mário Cláudio, sentia que a sua orientação sexual o fragilizava?

Sem dúvida. Vivi uma época em que essa fragilização constituía uma pedra de escândalo. Estávamos sujeitos a três tipos de censura: vinha a medicina e dizia: “é uma doença”; vinha a lei e dizia: “é um crime”, e depois vinha a Igreja e dizia que era um pecado terrível. Não havia pior, caía tudo em cima. Um homem e uma mulher, numa cama, podiam fazer as coisas mais sórdidas, mais obstrusas que se podem imaginar, estavam sempre protegidos pela intimidade conjugal, sobretudo se não fossem católicos (se fossem, andava lá o Papa pelo meio a dizer como deviam fazer). Mas em relação às pessoas que tinham uma orientação sexual minoritária, eram estigmatizadas socialmente e identificadas por isso, que era o pior de tudo. Quando se apresentava alguém, em contexto social, era vulgar apor a etiqueta: é homossexual. Era um labelo, um anátema. Nem uma gravata mais atrevida se podia usar, havia sempre alguém que dizia: “Mas que raio de paneleirice é essa?!” Era preferível ser cornudo, que também não era nada bom. Mas ainda há faixas da nossa sociedade onde isto continua a acontecer.

 

Tem dito que procura através de cada livro que escreve o seu próprio rosto. Encontrou?

É uma procura constante, uma procura sem encontro, sem achado. Poderíamos dizer, para quem tem alguma fé, crenças metafísicas ou até religiosas, que esse encontro com o corpo só se opera através da morte. Aí, sim, regressaremos a nós próprios. A morte é também o útero a que se regressa, mesmo quando é esse grande desconhecido. Entendo que todos nós, mesmo os que não têm consciência viva disso, procuramos o outro que é o lugar da proteção, daquilo a que se chama hoje a “zona de conforto”, essa expressão irritante. A zona de conforto é o útero ou aponta para aí, é onde se está quentinho (risos).

 

E o que o ocupa agora?

Estou sempre a escrever. Tenho um original que está pronto, mas ainda não entregue na editora. Continuo a escrever à mão… Por outro lado, vai sair agora, na Glaciar de Jorge Reis-Sá, a minha poesia, 50 anos de poesia.