Resistir é vencer

Resistir é vencer


Valério, arquiteto de meia-idade, passeia pelas ruas com um carrinho-de-mão carregado de tijolos. Em flashback, ficamos a saber que quando a troika se instalou, a oficina de arquitetura onde trabalhava fechou portas, solidária à força com o empobrecimento geral do país, pobreza em que caíramos por entre esquemas de variegada proveniência, políticas de sentido único…


Nas mãos dos mercados, esse Shazam! da modernidade dos povos talhados para as alegrias do 5G, foi um ver-se-te-avias na degradação do nosso viver habitualmente. Os portugueses medianos, ingeridos sem esforço, tornaram-se bons nutrientes para a comilança da banca e a veniaga partidária; os pobrezinhos e sobrantes alavancaram o elevador espiritual de muito bom praticante de banco alimentar, cujo céu certamente foi ganho.

O desempregado Valério resolve então recuperar a casa que lhe ficara dos avós que, com espanto e indignação, descobre ocupada por gente sem-abrigo & demais desqualificados. Porém, à síncope que o acometeu, seguida de internamento, sobreveio um outro olhar sobre o real, e então tudo deixou de ser como fora até aí: Valério passa a prestar atenção aos outros – construir para resistir torna-se uma divisa. E deste modo pretende edificar uma outra realidade, diferente da liquefação contemporânea sem horizontes para muitos nem teto ou chão, como se de um novo ajustamento se tratasse, desta vez o da decência, à margem da mercantilização da cidade e de quem nela vive.

Os portugueses, e os lisboetas em particular, passaram agora a andar ditosos com a procura turística. Não há cidade que aguente ou aeroporto que chegue para tanta oportunidade de fazer dinheiro. Pelo meio desta “avidez da ganhuça” – para citar o escritor anarquista Assis Esperança (1892-1975) –, haverá sempre tipos estranhos que recolhem tijolos, para desdém dos empreendedores e desgosto dos presumíveis herdeiros.

Com uma composição dinâmica de cada prancha, em que a vinheta tradicional está implícita ou simplesmente não existe, em benefício da fluidez narrativa, Pedro Burgos (Lisboa, 1968), ilustrador e arquiteto que “gosta de desenhar histórias aos quadradinhos sem quadradinhos”, como reza a contracapa, dá-nos em O Colecionador de Tijolos uma parábola dos tempos que correm.

A leitura lembrou-nos por vezes o Will Eisner de The Building, de que já falámos; outras, a poética do franco-grego Fred, criador do maravilhoso Philémon. A edição é cuidada, com atenção aos pormenores (por exemplo, a analepse impressa em papel doutra cor). Mestria na composição, solidez de ponto de vista que não nos deixa indiferentes, humor e amor em doses comedidas – o que mais se pode querer de uma BD?

 

BDteca. Um mundo à parte

Jeff Smith (The Rocks, Pensilvânia, 1960) integrou cedo a família de autores que criam o que gostariam de fruir, talvez farto da oferta corrente (mutantes e outras criaturas de várias cores em remultiplicação infinita). As influências são as dos velhos comics, de Walt Kelly (Pogo) a Carl Barks (Tio Patinhas), mas também Moebius. Will Eisner, entusiasmado, falou de Herriman (Krazy Kat); outros referiram-se a Schultz (Peanuts) – tudo gente de alto coturno a que se juntam referências literárias (Mark Twain, Tolkien), para não falar do cinema (Star Wars). Daqui e do mais extraiu esta criação original que dá pelo nome de Bone, publicada entre 1991 e 2004. Mundo à parte em que o maravilhoso e o fantástico se conjugam, os Bones são criaturas alvas como um osso de BD. Três primos estão na base da série: Fone Bone, sensato e sensível, Phoney Bone, autoritário e ganancioso, Smiley Bone, um simplório. Execrado e expulso de Boneville, Phoney leva consigo os dois parentes. Perdidos no meio dum deserto não assinalado nos mapas, são assaltados por uma nuvem de gafanhotos e dispersam-se. Fone Bone, a personagem principal, dá por si numa superfície escalavrada, avistando ao longe uma floresta – típico tópico de interdição e perigo – com um vale no centro. Aí vive uma pré-adolescente por quem Fone se apaixona, chamada Thorne (Espinho), com uma avó muito peculiar, e também afáveis criaturas do bosque, além de horrendas ratazanas do tipo pós-nuclear. Por todo o lado, um original dragão da guarda faz aparições inesperadas; e à medida que o enredo se intrinca, mais queremos entrar nesse estranho universo.