Mais olhos que barriga

Mais olhos que barriga


Um dos aspetos mais desagradáveis dos comics é o imperativo de fazer dinheiro a todo o transe, sujeitando os pobres super-heróis a inenarráveis tratos de polé.


Criado em 1991 pelo norte-americano Rob Liefeld e o argentino Fabian Nicieza, Deadpool é mais um elemento da parafernália de superentidades da Marvel: vilão mutante cujas características notórias são a capacidade de auto-regeneração dos órgãos e tecidos, alguma esquizofrenia, pois tanto combate como admira as grandes figuras mascaradas, e uma incontida tagarelice. A propensão para o cómico é evidente, facilitando a criação da série paralela intitulada Killogy,  imaginada por Cullen Bunn e Matteo Lolli.

A ideia até é boa: depois de chacinar os heróis da Marvel (Deadpool Kills The Marvel Universe, 2011), com o fito altruísta de libertá-los dos caprichos dos seus criadores – mas na verdade manobrado por um qualquer génio do mal –, e antes de matar-se a si mesmo (Deadpool Kills Deadpool, 1913), o vilão é persuadido pela Brigada dos Cientistas Loucos a liquidar as maiores personagens da literatura, fonte de todos os super-heróis, e a única forma de acabar com eles definitivamente. Por exemplo, a morte da Sereiazinha inviabilizará Namor, o príncipe submarino, e o fim dos Três Mosqueteiros ou das Mulherzinhas impedirá a formação de futuras equipas de heróis e heroínas… 

Boa a ideia, mas demasiado ambiciosa. Graças a um dispositivo de Reed Richards, do Quarteto Fantástico, Deadpool conseguirá viajar no espaço e no tempo. Da Odisseia à Metamorfose, do D. Quixote ao Sr. Scrooge, passando pelo Pinóquio (saído do interior de Moby Dick), contámos 23 referências, mais ou menos desenvolvidas, número certamente excessivo para as 80 páginas disponíveis. Podemos meter Gulliver ou Macbeth numa única vinheta, mas fazer o mesmo ou parecido com as sucessivas obras denota o propósito de citar o mais possível, em sacrifício da fluência narrativa. Além disso, a carnificina é sem descanso, como um videojogo para adolescentes retardados, em maçador acumular de pancadaria e larachas.

O trabalho de Lolli tem bons momentos: o massacre da tripulação do “Pequod”, a tareia das Mulherzinhas, Deadpool trespassado pelo chuço do Quixote. Mas o melhor mesmo está nas capas de Mike del Mundo.

Um dos aspectos mais desagradáveis dos comics é o imperativo de fazer dinheiro a todo o transe, sujeitando os pobres super-heróis a inenarráveis tratos de polé: matam-nos, ressuscitam-nos, casam-nos, mudam-lhes a fatiota, a cor da pele e até o sexo, criam séries paralelas em mundos alternativos, deixando à nora o desgraçado leitor que não seja um incondicional… Ao mesmo tempo, criam-se mais heróis e vilões, com as suas evoluções e especificidades, assim à maneira dos pokémons. O que importa é fazer render o peixe. O coitado do Homem-Aranha tem sido a principal vítima deste festival de ganância, o que não é de admirar, tratando-se a mais icónica e portanto a mais rentável marca da sua editora. É verdade que, por vezes, surgem pepitas, mas este não é o caso.

 

 

Deadpool mata os clássicos!

Texto: Cullen Bunn

Desenho: Matteo Lolli

Editora: G. Floy Studio, 2019

 

BDTeca

Very British

A propósito de Raymond Macherot (1924-2008), um mestre da BD franco-belga, Hergé, que muito o admirava, foi um dia taxativo: “Macherot c’est Macherot…”. Uma das suas personagens mais queridas, fruto do fascínio que sobre si exercia a Inglaterra, é o patusco Coronel Clifton – Harold Wilberforce Clifton, oficial reformado do MI5, detective amador, escoteiro graduado, com um fleumático bigode imperial, indumentária impecável, governanta previdente e um MG-Type Midget de fazer inveja, ideal para as deslocações entre Londres e a cidadezinha fictícia de Puddington, onde vive. 

Macherot assinou apenas três álbuns – e com que sedutora simplicidade de linhas e eficácia narrativa. A transferência da revista Tintin para a rival Spirou obrigou-o a largar Clifton, bem como Clorofila, um rato do campo de quem oportunamente falaremos. Em As Investigações do Coronel Clifton, publicadas em 1961, um emir das Arábias deposita o maior diamante do mundo no estabelecimento de dois honrados ourives da capital inglesa, para que estes lhe façam um exuberante anel. Assustados com o montante do seguro, optam por guardá-lo no cofre da casa, um impante “‘Johnson’ superblindado de tripla combinação”, mas – estava-se mesmo a ver – no dia seguinte os honestos joalheiros darão de caras com o sítio… Para evitar o escândalo do assalto, recorrem aos serviços do famoso militar retirado.

 

As Investigações do Coronel Clifton

Texto e Desenhos: Raymond Macherot

Edição Editorial: Íbis, Venda Nova, 1969