Tancos. Os emails que comprometem o ex-diretor nacional da PJ e Marcelo

Tancos. Os emails que comprometem o ex-diretor nacional da PJ e Marcelo


Suspeitas sobre a atuação de Almeida Rodrigues levaram o Ministério Público a extrair uma certidão para o investigar em inquérito à parte do de Tancos. O i revela as conversas que comprometem o ex-diretor da PJ e magistradas.


“Os gajos vão fazer sair porcaria na televisão. A PJ anda metida nisto. Deve ser já chamado o diretor da PJ [Almeida Rodrigues] para estarem caladinhos e o patrão [diretor da PJ Militar] deve ir falar com o PR [Presidente da República] ASAP [o mais rápido possível]”. Foi assim que o major da Polícia Militar reagiu às notícias que surgiram após a recuperação fictícia do armamento furtado em Tancos, num email enviado a 20 de outubro de 2017 a Vasco Brazão, à data porta-voz daquela polícia. O objetivo era travar fugas da PJ, fosse a que custo fosse, e pretendiam contar com o apoio do diretor daquela polícia e até de Marcelo Rebelo de Sousa.

O rastilho para uma eventual relação privilegiada com o ex-diretor nacional da PJ estava lançado, mas só mais à frente começaram a surgir os factos que levaram a PJ a propor abrir uma investigação à parte para apurar eventuais responsabilidades criminais de Almeida Rodrigues.

Uma das conversas fundamentais foi com uma magistrada. “Mas é extraordinário. Ai, eu não dava; por questões de segurança, não dava” – exclamou com surpresa a procuradora da República Cândida Vilar, quando Vasco Brazão, antigo porta-voz da PJ Militar, lhe contou ao telefone, a 19 de dezembro de 2017, que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal, em Lisboa, pedira à GNR os números de telemóvel e as matrículas dos carros em que se tinham deslocado nos últimos meses os militares do núcleo de Loulé – que participaram na operação de recuperação das armas de Tancos.

A conversa prosseguiu, com Brazão a revelar à magistrada uma alegada fuga do ex-diretor da PJ: “O diretor deles [Almeida Rodrigues, então diretor da PJ] disse ao nosso diretor [Luís Vieira, da PJM] para ele ter muito cuidado. Avisou-o mesmo como amigo, eles são amigos, avisou-o mesmo como amigo pessoal. ‘Olha, eu não tenho mão naquele tipo, portanto tens de ter muito cuidado’. Ele entendeu aquilo como uma questão pessoal, mesmo”. O “tipo” era Luís Neves, então diretor da Unidade Contraterrorismo da PJ, que investigava o assalto a Tancos, e que meses depois seria nomeado pelo Governo diretor da PJ, sucedendo ao próprio Almeida Rodrigues.

Perante a incredulidade de Cândida Vilar (“Eh pá, mas como é que isto é possível, andarem nisto a participar uns dos outros?”), Brazão carregou nas tintas: “Ele [Almeida Rodrigues] disse mesmo ‘tenha muito cuidado porque ele é mesmo má rês’. Ele a dizer isto, o próprio diretor dos serviços”.

As escutas colocadas nos telefones dos principais arguidos do caso Tancos acabaram, assim, por fazer sérios estragos na própria Polícia Judiciária e no Ministério Público: Almeida Rodrigues e três procuradoras da República em funções em Lisboa e no Algarve vão agora ser investigados em inquéritos autónomos, por eventuais crimes de violação de deveres funcionais, denegação de justiça, prevaricação e favorecimento pessoal. O MP considera que há suficientes indícios de que colaboraram com as chefias da PJM na realização de uma investigação paralela ao caso de Tancos, violando os seus deveres profissionais e deontológicos.

Cândida Vilar foi a magistrada do MP responsável pela investigação e acusação de militares no caso da morte de dois recrutas, falecidos durante a instrução militar, em 2016, e pelo inquérito à invasão da Academia do Sporting, em Alcochete, em maio de 2018, caso que está agora na fase de instrução.

O “avô congénere” Conforme o semanário SOL noticiou no início deste ano, o MP suspeita que foi Almeida Rodrigues quem avisou Luís Vieira de que ele e outros colegas estavam sob escuta – algo que o ex-diretor da PJ negou na altura, de forma veemente. O facto é que, a partir dessa data, os suspeitos da PJM não só mudaram de telemóveis, para se livrarem da vigilância policial, como se desdobraram em contactos, recorrendo a quem melhor se mexia no próprio aparelho judicial.

Tal como noutros casos, os arguidos usavam palavras de código para se referirem a Almeida Rodrigues. Noutras conversas intercetadas pela equipa de investigação ao “reaparecimento” das armas de Tancos, Vasco Brazão referia-se a Almeida Rodrigues como “o avô congénere” – ou seja, “congénere” de Luís Vieira, diretor da PJM, e “avô” por estar há muitos anos na direção da PJ.

Enquanto a PJM se socorria de Cândida Vilar em Lisboa, em Loulé foi Lima Santos, responsável do núcleo local de investigação criminal da GNR (NIC), quem tentou a sorte com duas procuradoras. Sobre uma delas – Helena Miguel –, colocada no DIAP de Loulé, o MP suspeita que tenha passado informações privilegiadas ao coordenador do NIC daquela cidade, chegando a ser intercetada em escutas. No início de 2019, Lima Santos ligou-lhe para se aconselhar, mas ela, sabedora da investigação em curso, disse-lhe que seria melhor falarem por um meio alternativo.

Foi Lima Santos quem, no interrogatório – para demonstrar que fora enganado pela PJ Militar, que o convencera a colaborar na farsa da recuperação das armas dizendo-lhe que esta era feita em colaboração com a PJ –, avançou com o nome da terceira magistrada: Isabel Nascimento, do DCIAP, em Lisboa, onde decorria a investigação.

Lima Santos disse ter recebido um telefonema de Isabel Nascimento, no início de 2018, ainda a Operação Húbris não era pública, mostrando interesse em falar com ele. Também ela trabalhara em Loulé e daí o conhecimento. Almoçaram num restaurante no centro de Lisboa. E, julgando que a magistrada era uma emissária da equipa de investigação, ele confessou-lhe toda a história, pensando que depois seria chamado ao processo para depor como testemunha.

Segundo a magistrada, porém, o enredo é outro. O pedido do encontro partiu de Lima Santos, tendo ela garantido não ter qualquer ligação ao inquérito.

“Não tentei boicotar qualquer investigação referente a esse processo, nem pratiquei qualquer ato que pudesse gerar tal efeito”, afirmou na altura a magistrada, em Direito de Resposta enviado ao semanário SOL. “Não fui sequer ouvida como testemunha em qualquer processo relacionado com o referido caso ou que respeite à averiguação de responsabilidades emergentes do mesmo. Quaisquer atos ou contactos profissionais ou pessoais que tenha efetuado reportei-os à minha hierarquia no momento próprio”, acrescentou.

O interrogatório fatal para Almeida Rodrigues A Polícia Judiciária, no seu relatório final, solicita que se ordene a extração de uma certidão com base nas declarações de Vasco Brazão “para, em processo autónomo, proceder ao inquérito relativo a matéria factual e imputação criminal aí presente, contra o ex-diretor nacional da Polícia Judiciária, Dr. Almeida Rodrigues”.

Nesse interrogatório, Vasco Brazão recordou: “O diretor-geral da Polícia Judiciária Militar foi avisado, numa cerimónia no Terreiro do Paco, pelo [à data] diretor nacional da Polícia Judiciária, dr. Almeida Rodrigues, para ter muita atenção, porque não conseguia segurar o dr. Luís Neves, e que isto ia ser terrível, tendo então o diretor-geral da Polícia Judiciária Militar respondido ao responsável máximo da Polícia Judiciária que estava a contar com isso, pois o dr. Luís Neves queria acabar com a Polícia Judiciária Militar, ao que, novamente, o diretor nacional da Polícia Judiciária, dr. Almeida Rodrigues, adverte para ter cuidado e olhar para trás do ombro quando andar na [rua], o que levou a que o diretor-geral da Polícia Judiciária Militar avisasse os arguidos Vasco Brazão e Pinto da Costa que, se acaso lhe acontece qualquer coisa, o responsável era o dr. Luís Neves”. Conclui que “retirou [do que lhes fora dito] que havia uma ameaça física e que, por outro lado, a Polícia Judiciária estava a investigá-los”.

Ex-diretor da PJ desmente Contactado ontem pelo i, Almeida Rodrigues, que reafirma a sua inocência, asseverou que “não é por uma mentira ser repetida muitas vezes que se torna verdade”. Diz ainda esperar ser chamado com rapidez pelo MP, dado que confia na ação da justiça. E contesta ainda uma informação, avançada pelo SOL, de que fora alvo de uma escuta.