Leitor de BD. Os grandes mestres não desiludem

Leitor de BD. Os grandes mestres não desiludem


Há uns bons anos que Hermann tem em Yves H. um argumentista à altura do seu talento. Com Duke, o livro de que hoje nos ocupamos, esta colaboração pai-filho avança com uma série pensada de raiz


Hermann (Hermann Huppen, Bévercé, Ardenas, 1938) é um dos mais extraordinários autores de BD em actividade. Este terceiro álbum da série Duke, com argumento do seu filho, Yves H. (Bruxelas, 1967), aí está para o demonstrar.

Se a memória não atraiçoa, o nosso primeiro contacto com Hermann deu-se nas páginas da revista Tintin, com a série Jugurtha, com argumento de Jean-Luc Vernal, a desenrolar-se na Antiguidade, no meio dos jogos de poder na corte dos Barcas. Mas foi na companhia de Greg que Hermann constituiu uma das duplas míticas da BD franco-belga, em torno da pura aventura de Bernard Prince e de Comanche, uma mulher cheia de fibra, dona do rancho «Triplo 6», western que foi uma excelente resposta do semanário belga ao concorrente francês Pilote, casa do Tenente Blueberry (Fort Navajo). Desfeita a dupla, Hermann avança por outros territórios ficcionais, de Jeremiah, fábula pós-nuclear, ao ciclo medieval de As Torres de Bois-Maury, além de vários one-shot (histórias publicadas num único álbum, sem sequência). 

Há uns bons anos que Hermann tem em Yves H. um argumentista à altura do seu talento. Com Duke, o livro de que hoje nos ocupamos, esta colaboração pai-filho avança com uma série pensada de raiz, de que saíram já três tomos, todos publicados entre nós: A Lama e o Sangue, Aquele que Mata e Sou uma Sombra, editado este ano.

E quem é este “Duke”? Ao terceiro álbum ainda estamos a descobrir, aliás na companhia da própria personagem, Morgan Finch, de seu nome cristão, ex-adjunto do xerife da pequena cidade de Ogden, Colorado. Aqui quem manda é um potentado da mineração, com recursos financeiros, poder de fogo e sicários arregimentados para fazer valer os seus interesses contra os dos proprietários fundiários e reduzir a autoridade do estado a mero pró-forma. Esta situação obriga Duke – menos contemporizador e mais jovem que o xerife, um hesitante – a afastar-se desse papel decorativo, o que só lhe trará problemas. Para simplificar diremos que se trata de um pistoleiro que não gosta da violência das armas – ou julga não gostar. É esta densidade ambivalente o maior trunfo da série no que ao argumento respeita, além de tratar-se de uma narrativa passada no oeste americano, topo com o melhor lugar cativo do nosso imaginário.

Sobre a arte de Hermann, o que escrever sem repisar os encómios? Atente-se na capa, um cowboy solitário na sua montada, de arma na mão, uma sombra no meio da noite de intempérie; no interior, os planos aguarelados da paisagem, a finura psicológica no tratamento das expressões, o grotesco por vezes quase simiesco dos corpos, em contraste com a beleza dos cavalos, o realismo dos trajes e dos edifícios. Veja-se a prancha 37 (pág. 39): dez vinhetas de tensão ao luar sem uma palavra. Mestria. É verdade: os grandes mestres nunca desiludem.

DUKE – Sou uma sombra

Texto: Yyves H.

Desenho: Hermann

Editora: Arte de Autor, Estoril, 2019

BDTECA

Traquinagens

Quim e Filipe (Quick et Flupke, no original) aparecem no jornal juvenil Le Petit Vingtième, em 1930, fazendo companhia a Tintin. Enquanto o repórter deambula pelo Congo, Hergé oferece semanalmente aos leitores histórias humorísticas de duas páginas, em que os protagonistas são dois garotos de Bruxelas. O seu grande desígnio é comum a todos os miúdos de todas as épocas: passar o dia a brincar, de preferência na rua, se possível com muitos amigos. Meninas, não há; parece que a rua não era lugar para elas nesse tempo, até porque jogar à pedrada, um dos entreténs da rapaziada de várias eras, não parecia ser muito do seu agrado. A comicidade é suave e inofensiva – quem nunca tocou a todas as campainhas de um prédio e depois deu à sola? Nos melhores momentos, reconhecemos o humor de Hergé, dos estatelanços aos quiproquós. 

Série secundária em face da magnitude das aventuras de Tintin, lê-se com agrado pelo valor testemunhal: dos artefactos – quando a tecnologia de ponta se materializava num esplendoroso carrinho de rolamentos, fabrico próprio -, à pedagogia aplicada, a saber, uns açoites bem puxados quando as tropelias passavam das marcas, para não falar da falta de sentido de humor do polícia de giro (Quim e Filipe têm um problema com a autoridade…)

Os episódios cessam em 1941, ano que não é para graças. Numa das longas entrevistas que concedeu a Numa Sadoul, Hergé revelou que estava então assoberbado de trabalho com Tintin e Milou e ainda uma outra série de que também falaremos: Jo, Zette et Jocko.

Aventuras e Desventuras de Quim e Filipe – vol. I

Texto e desenho:Hergé

Editora:Difusão Verbo, Lisboa, 2000