A responsabilidade no Estado


A Constituição estabelece no seu art.º 22.º a responsabilidade do Estado, determinando igualmente o art.º 271.º a responsabilidade dos seus funcionários e agentes.


Como se não bastasse a história da contratação das golas inflamáveis e o que se tem sabido sobre o lamentável caso de Tancos, surge agora uma outra situação inacreditável de ocultação sobre o que se passou no colapso do sistema informático dos tribunais (Citius), ocorrido em 2014. Efectivamente, segundo o jornal Público noticiou ontem, a Inspecção-Geral de Finanças classificou em Novembro de 2018 como confidencial uma auditoria ao colapso do Citius, com o argumento de que “o acesso ao processo de auditoria permitiria o conhecimento antecipado e informações sobre as vulnerabilidades do sistema tecnológico e administrativo da Justiça (Citius), com os riscos de prejudicar, influenciar ou impedir o normal funcionamento das instituições públicas no domínio da Justiça”. Essa classificação ocorreu depois de o jornal, quer na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, quer num processo de intimação no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, ter obtido decisões favoráveis ao conhecimento da referida auditoria.

É preciso recordar que essa auditoria foi determinada depois de o sistema Citius ter estado parado durante 44 dias, a partir de 1 de Setembro de 2014, inviabilizando o funcionamento dos tribunais durante todo esse período, que, aliás, já tinha sido altamente reduzido nos meses anteriores, a pretexto de ser necessário prepará-los para a nova reforma da organização judiciária. Os prejuízos causados nessa altura aos advogados e aos cidadãos que estes defendem foram colossais, sendo, portanto, natural que se apurassem as competentes responsabilidades por esse desastre. Sobre isto, a então ministra da Justiça, Paula Teixeira, em declarações à Visão a 17 de Setembro desse ano, veio dizer que assumia “integralmente a responsabilidade política” pelo sucedido, mas que sobre as anomalias técnicas haveria “um processo de averiguações porque não há ninguém irresponsável”.

Passaram cinco anos, e o que se verifica é que, afinal, o tal processo de averiguações, que acabou por ser realizado pela Inspecção-Geral de Finanças, não só não conduziu à descoberta de qualquer responsável como, inclusivamente, o mesmo é fechado a sete chaves e colocado no segredo dos deuses, não vá a confiança num sistema informático que, pelos vistos, tem enormes fragilidades ser posta em causa. Aliás, a confiança nesse sistema tem andado nos últimos dias pelas ruas da amargura, com as enormes confusões que têm sido causadas no trabalho dos advogados com as alterações ultimamente efectuadas. Efectivamente, estas alterações tornaram mais difícil a submissão de peças processuais, com a necessidade de recurso a outro sistema, o Signius, e mais complexa a visualização dos documentos no próprio Citius. Mas, como se isso não bastasse, o sistema funcionou com bastantes erros durante vários dias, tornando ainda mais insegura a sua utilização. Provavelmente, se os resultados da auditoria fossem atempadamente conhecidos, tudo isto poderia ter-se evitado.

Temos, assim, um curioso entendimento do que é o regular funcionamento das instituições democráticas. Os nossos governantes, como se verificou igualmente com Azeredo Lopes sobre o caso de Tancos, criaram uma curiosíssima doutrina sobre a responsabilidade política que, no fundo, só serve para os tornar politicamente irresponsáveis. Na verdade, se acontecer qualquer colapso nos organismos sob a sua tutela, nada mais têm de fazer do que declarar que assumem a responsabilidade política pelo sucedido e continuar em funções como se nada se passasse. E para tranquilizar consciências, basta-lhes ordenar processos de averiguações para rigoroso apuramento dos factos.

Só que os referidos processos de averiguações têm conduzido a resultados totalmente absurdos. Quanto às golas inflamáveis, para tranquilidade geral, descobriu-se que as mesmas não ardiam, apenas furavam. Já no processo de Tancos ocorreu o achamento das armas furtadas em condições que levaram o Ministério Público a deduzir uma acusação em processo criminal. E agora, no colapso do Citius, a auditoria realizada é considerada confidencial, impedindo os interessados de conhecer as fragilidades de um sistema informático com que trabalham, assumindo assim o Estado, como enorme virtualidade, manter os cidadãos na ignorância sobre o falhanço das instituições em que deveriam confiar.

A Constituição estabelece no seu art.o 22.o a responsabilidade do Estado, determinando igualmente o art.o 271.o a responsabilidade dos seus funcionários e agentes. É inaceitável que essa responsabilidade não seja cabalmente averiguada e que seja colocado um manto de segredo sobre investigações que são ordenadas precisamente para apurar responsabilidades. A defesa do Estado de direito democrático é incompatível com estes secretismos.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990