Da vaca que voa à vaca que foge do prato


No continente como nos Açores há muitos criadores extensivos que têm mais preocupações ambientais que um qualquer pimpão urbano a querer armar ao ecologista da última carruagem.


O meio século de vida pode implicar um conjunto de sujeições físicas, mas projeta-nos para um patamar em que já não vamos em conversas com tanta facilidade, já não fazemos tudo o que é suposto na ótica dos outros – salvo as obrigações de lei e do Centeno de turno – e aprendemos a ponderar as opções em função de alguns egoísmos não sancionáveis.

Quatro anos depois, o país evoluiu da vaca que voa para a vaca que foge do prato. Ambas as vacas são do domínio do simbólico e têm preços a pagar pelos de sempre. E os de sempre tanto podem ser os que não vivem ou sobrevivem ao abrigo de trabalho no Estado ou os que de forma resiliente permanecem no espaço rural, no Interior do país e fora do grande litoral de todas as atenções. Bem pode a vaca voar, percorrer a Estrada Nacional 2 ou insistir numa narrativa de satisfação sem adesão com a realidade dos serviços públicos e de boa parte do país. Estão no domínio do simbólico, fortemente inconsequente e sem sustentabilidade.

Há anos que vivemos em emergência climática, com poucas decisões estruturais, decisões estruturadas e Estados que cumpram os objetivos. Aliás, estados e cidadãos, porque, por exemplo, nas metas de reciclagem e de adesão à economia circular estamos muito aquém dos objetivos e basta percorrer o território urbano e suburbano para perceber que os comportamentos individuais ditam a lei do mais poluidor. Portanto, alegram-se as consciências que as cantinas da Universidade de Coimbra deixem de ter carne de vaca nos seus menus – que alívio para a tesouraria da academia – mas conformam-se que quem puder possa ir a uma cadeia de fast-food emborcar um hambúrguer e de seguida aliviar os sobrantes na berma de uma estrada qualquer do tecido urbano. São as mesmas consciências que se conformaram com o abandono do Interior que conduziu ao despovoamento desses territórios, à redução das atividades agroalimentares e silvícolas e a um foco geral em apenas uma parte do país. E voltam a atacar com uma popularidade proibitiva que fustiga o mundo rural. Longe vão os tempos em que a academia era um fervilhar de liberdade, agora envereda pelo proibicionismo, em linha com as tendências.

E se as tendências tendenciosas ditam que a vaca voa ou a vaca foge do prato, impõe-se uma vontade qualquer, sem pingo de respeitos pelos outros. É certo que infelizmente em muitos lares portugueses a medida teria ténue aplicação, tão marginal como a frequência com que a ditosa ruminante se apresenta ao garfo. No continente como nos Açores há muitos criadores extensivos que têm mais preocupações ambientais que um qualquer pimpão urbano a querer armar ao ecologista da última carruagem. Tanto que havia para fazer, mas o pimpão procura o estrelato e a integração nas últimas tendências.

A vaca que voa, com diversas perspetivas, colocou os serviços públicos, por ação, cativação ou inação, no estado em que estão. É de crer, para quem acredita, que a que foge do prato vai ter similar pastagem espinhosa.

Estas eleições legislativas são estranhas. Tão bizarras como ambas as vacas, ou serão bezerras? Uns querem ganhar, mas não pedem o que nunca ninguém teve tantas condições para obter, a maioria absoluta. Outros parecem não querer ganhar e depois há os transformistas, de ambiente, de social-democracia, de mais sérios que os outros, de mais espertos que os outros e por aí a fora.

Por mim, por imposição do meio século, já pedia mais verdade, mais sustentabilidade e mais informação sobre até onde pretendem ir se não tiverem os resultados a que se propuseram ou que era suposto obterem. Não são quatro anos que esmorecem, a existência de linhas vermelhas de valores, de conceção de sociedade e de posicionamento de Portugal na União Europeia e no Mundo.

Com tantas habilidades e transformismos políticos, não espantará que a vaca que voa do próximo ciclo político se apresente sem género definido, como convém a quem faz da coerência uma coisa do século passado, descontinuada e sem possibilidade de reciclagem.

À cautela, o melhor mesmo é não deixar que outros decidam por si, a 6 de outubro, vote!

 

NOTAS FINAIS

A VACA QUE RI. Quando este artigo for publicado já se saberão os resultados das eleições para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira. Espero que Paulo Cafôfo e o PS possam repetir o impulso de vitória obtido no Funchal em 2013, quando Vítor Freitas concretizou uma solução eleitoral diversificada e vencedora. Antes de outras soluções governativas à esquerda.

A VACA QUE LÊ. Era bom que a Procuradoria-Geral da República esclarecesse os portugueses sobre quais são as leis que não podem ter interpretações literais. Pode ser que alguns dos esclarecimentos tenham aplicação na carga fiscal e no acesso a alguns bens relevantes.

A VACA QUE CHORA. Pelo que se vai vendo da qualidade do serviço e dos resultados está à vista que a reversão da privatização da TAP, incluída no memorando com a Troika, por PS e PSD, foi uma boa opção de gestão dos recursos públicos.

PÓS-NOTAS FINAIS. O João Gaspar era um Senhor. Carácter, sentido democrático e profundo espírito de missão no que fazia, transformavam o convívio numa fonte de inspiração cívica e política. Foi assim na Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira, a que presidiu, e na Assembleia da República. Tive o privilégio de contar sempre uma palavra amiga, mesmo nos tempos dos seus combates pela saúde. A perda é parte da vida, mas depois do João Quítalo em 2018, agora o João Gaspar. É dose.

 

Escreve à segunda-feira