Golas. Se não fosse esta investigação, tudo tinha sido obra do jornalismo


A julgar pelo que tem sido escrito, as golas não são inflamáveis por acaso, foi por acaso que o secretário de Estado que agora saiu não sabia que o filho tinha negócios com entidades públicas e, por acaso, o MAI não sabia que as empresas tinham sido indicadas por um adjunto.


É muito comum, quando uma notícia põe em causa o poder político, este contestá-la. O ridículo é quando o faz sem saber se a notícia em causa é realmente falsa ou, pior, quando o faz sabendo que está a mentir. Não se sabe o que aconteceu no caso das golas. O que se sabe é que Eduardo Cabrita se apressou a desmentir em julho qualquer problema com os kits entregues às populações (e com as golas) assim que saíram as primeiras notícias. Fê-lo de forma inflamada, sem conseguir esconder a sua irritação com os jornalistas. Usando as suas palavras, e sabendo o que hoje se sabe, talvez ele o tenha feito de forma “irresponsável”.

De facto, poderia não haver ilegalidades em nenhuma parte deste processo, poderiam até as notícias ser mesmo “alarmistas e irresponsáveis”, como disse o ministro da Administração Interna, poderiam as golas ser fundamentais para um cenário de evacuação de uma aldeia e valerem, afinal, o dinheiro que custaram. Mas parece que não. Cada vez mais parece que não.

Mas mesmo num cenário em que não houvesse ilegalidades, há coisas que deixam qualquer português estupefacto desde o início (não é preciso ser jornalista ou “ter conhecimentos técnicos” – outra expressão usada): a leviandade com que tudo foi conduzido dentro de um gabinete ministerial. A forma como foram gastas centenas de milhares de euros comunitários e como se arrecadou dinheiro violando a lei das incompatibilidades.

A julgar pelo que vários meios de comunicação já escreveram e várias fontes revelaram ao i, as golas não eram inflamáveis por acaso – porque a Proteção Civil também não terá pedido que o fossem –; por acaso, também o secretário de Estado da Proteção Civil que agora se demitiu não sabia que o seu filho estava impedido de fazer negócios com entidades públicas; e, por acaso, o ministro da Administração Interna também não sabia que as empresas que forneceram as golas à Proteção Civil tinham sido escolhidas pelo adjunto do secretário de Estado, num procedimento que agora se suspeita ter sido uma autêntica farsa.

Se em tudo isto não houver crime – o que não se pode para já excluir – há, pelo menos, muito amadorismo, muito desrespeito pelo dinheiro público. Basta ver como são feitas as consultas a empresas para fugir a concursos públicos.

Mas a falta de respeito pelos portugueses por parte de alguns elementos vai ainda mais longe. Repare-se que não foi o ter tido conhecimento (caso já não o tivesse antes das notícias) dos atos agora suspeitos que levou o secretário de Estado da Proteção Civil a pedir a exoneração, não foi a constatação de que falta transparência no seu gabinete – foi o ver-se apertado pela justiça, foi o perceber que poderia ser um calcanhar de Aquiles para o PS nas próximas eleições.

Esta saída não foi por respeito a quem servia, como deveria ser – se o fosse, teria acontecido logo em julho –, esta saída foi por obrigação. Ou seja, foi, sim, por “razões pessoais”, como o próprio disse, não pelo país.

Na última semana, já quase ninguém se lembrava das golas, até porque as últimas notícias davam conta de que a Universidade de Coimbra tinha concluído que, afinal, não eram inflamáveis até uma certa distância, sendo apenas perfuráveis quando se aproximavam das chamas.

Se não fosse a investigação agora em curso, todo este caso tinha ficado para a história como um deslize do jornalismo que, sensacionalista, tinha procurado o alarme e tentado descredibilizar uma causa tão nobre como a dos kits do projeto Aldeia Segura – que, simbolicamente, foram encomendados ao marido de uma autarca do PS por um valor duas vezes superior ao de mercado e por indicação de um jovem padeiro que, por estar ligado à máquina do PS, chegou a adjunto de um secretário de Estado. E, pior, se não fosse esta investigação, a tese de Eduardo Cabrita até tinha ganho muitos adeptos.

 

Jornalista