A miúda que veio para ficar

A miúda que veio para ficar


As crianças estão na BD desde o princípio, e com momentos altos – lembremos os Peanuts, de Charles M. Schulz. Para o franco-sírio Riad Sattouf (Paris, 1978), criador do auto-referencial O Árabe do Futuro (2014) e também realizador, nomeadamente da excelente comédia Les Beaux Gosses (2009), o mundo da infância e da juventude é um…


As crianças estão na BD desde o princípio, e com momentos altos – lembremos os Peanuts, de Charles M. Schulz. Para o franco-sírio Riad Sattouf (Paris, 1978), criador do auto-referencial O Árabe do Futuro (2014) e também realizador, nomeadamente da excelente comédia Les Beaux Gosses (2009), o mundo da infância e da juventude é um tema persistente.

Cheia de carisma e adorável criancice, Esther, nascida nas páginas do semanário L’Obs, em 2015, não é só mais uma criança nos quadradinhos; antes da personagem de papel, está Esther A., a menina de carne e osso, informante e filha de amigos do autor. Todo o espanto, toda a fantasia, todos os sonhos improváveis e todos os ‘amores’ impossíveis são maravilhosamente recriados por Sattouf: Esther tem como grandes aspirações ser loura, famosa e possuir um iPad, artefacto que o pai, um professor de ginástica com espírito crítico, lhe nega, por evidente despropósito para quem ainda nem completou os dez anos. Infelizmente para Esther, a maioria dos outros progenitores não têm a mesma opinião. Um pequeno apartamento, em que partilha o quarto com o irritante António, o irmão de 14 anos, é o seu lar. A família, remediada, completa-se com a mãe, empregada bancária e doméstica em regime pós-laboral, por isso muitas vezes cansada, e a avó, cuja casa na Bretanha é local de férias. Outro palco privilegiado é a escola, em especial o recreio. Esther tem duas amigas diletas: Eugénia, criança rica e por vezes pretensiosa, e Cassandra, menina negra cujo pai certo dia partiu para não mais voltar.

As circunstâncias da série são as expectáveis: a recriação recorrente dos maneirismos dos adultos, a relutância pelas grosserias dos rapazes, cuja missão parece ser a de maçá-las com o seu gozo e a sua má-criação – se bem que por vezes haja qualquer coisa que as desperta. Introduzido com leveza e sempre a propósito pelo autor, a incompreensão do vasto mundo adulto da política, as manifestações incipientes de discriminação social e racial, que ainda não assimilam inteiramente, e as questões de género são alguns tópicos obrigatórios. Esther, contudo, não é a Mafalda do Quino, contestatária no seio de uma família conformista, que muitas vezes parece uma mulher pequena; Esther é sempre criança (o gag sobre o atentado ao Charlie Hebdo é um bom exemplo). A série acompanhará o crescimento da miúda, pelo que teremos oportunidade de assistir à evolução desta família.

Organizado graficamente sob a forma de gag (história humorística de uma prancha), dividido em duas páginas, o livro tem o formato de uma edição de tiras de BD. O texto, além de reproduzir as falas das personagens em filacteras (os ‘balões’), é acrescentado por geniais comentários de Esther em cursivo, que acentuam o tom humorístico.

O Diário de Esther – Histórias dos Meus 10 anos, vol 1

Texto e Desenho Riad Sattouf

Editora Gradiva, Lisboa, 2019

 

BDTECA

História e BD

Os quase 900 anos de História de Portugal são uma mina que a BD por cá aproveitou quase sempre para obras de teor essencialmente didático, mas de pouco brilho narrativo. O que não seria, se este filão fosse aproveitado por argumentistas da craveira de Charlier, Greg ou Van Hamme, que entre nós não houve, não se sabe bem porquê? Há exceções, claro; e uma delas foi a do saudoso Jorge Magalhães (1938-2018), que fez o que pôde. Em Giraldo o Sem Pavor (1986), Magalhães deixa brilhar um talento com 20 anos, à data da elaboração destas páginas: José Projecto (Évora, 1962), apregoado e evidente admirador de desenhadores como Auclair, Rosinski e Segrelles.

Geraldo Geraldes, “o Sem Pavor”, é uma dessas figuras reais cobertas pelo mito, uma das muitas personagens dum passado a pedir autores. Cavaleiro nobre, mercenário, chefe de salteadores, quando lhe convinha guerreava ao lado dos mouros contra os cristãos como ele. Praticante do fossado, incursão relâmpago no reduto inimigo, tinha, qual guerrilheiro, retaguardas inexpugnáveis.

Estamos diante duma caça ao homem: depois de matar um cavaleiro de D. Afonso Henriques, Geraldo é perseguido até alcançar refúgio entre os sicários que comanda, não sem antes pernoitar numa casa isolada, onde uma mulher o aguarda. Um pretexto para desenhar cenas de combate, belas figuras humanas e animais de vário tipo, algo que Projeto faz com verificável gosto e competência.

 

 

Giraldo O Sem Pavor

Texto Jorge Magalhães

Desenho José Projecto

Editora Futura, Lisboa, 1986